*Por Xico Sá
Uma urna eletrônica. José Cruz (Agência Brasil) |
Prezada urna eletrônica, saudações, bom dia, sei que não és culpada, mas
te reencontro neste domingo ainda ressabiado, com uma ressaca nada
democrática, espero que compreendas o meu esperneio, sabes bem do que
estou falando. Poxa, foi chato ver o meu voto virar pó naquela fatídica
emboscada parlamentar iniciada pelo Eduardo Cunha e seus renegados bandoleiros, os mais rápidos do velho centro-oeste.
Sei que não tens culpa no cartório das conspirações e tampouco és
calmante para os meus ressentimentos morais e cívicos. Ao te rever,
porém, inevitável lembrar que a confiança em ti anda meio suspeitosa.
Sei, isso passa, é tanto que estou aqui de volta na cabine de papelão,
boto fé na reconquista do nosso relacionamento, espero que o apitinho do
“confirma” não fique na minha cabeça como a marcação sonora de um filme
de terror. Óbvio que ainda não engoli as manobras do impeachment
mandrake — golpe em qualquer dicionário de republiqueta —, mas, juro,
vou relaxar um pouco, farei tudo para reatar o nosso namoro. Só
precisamos de uma longa D.R., daquelas discussões lentas e arrastadas
como um filme iraniano. Amor e democracia dão trabalho — quer moleza,
vai para o Tinder, malandragem.
E olhe que não estou tratando, estimada urna, do simples desgosto de ver
a minha vontade eleitoral frustrada contigo. É do jogo. Gozo para
todos. Foi exatamente a não aceitação democrática da derrota que levou o
Aécio Neves a
desmerecer 54 milhões de votos e tocar fogo no circo. O resto da
história a gente viu como foi, não gastarei tua santa paciência na
véspera atarefada de mais um pleito.
Que seja feita a tua vontade. Te mando este recado porque não posso mais
escrever umas malcriações nas velhas cédulas. Lembras? Os eleitores
revoltados elegiam até os bichos em vez dos homens. Neste zoo
anarquista, destacamos o Bode Cheiroso de Jaboatão dos Guararapes (PE), o
rinoceronte Cacareco em São Paulo e o Macaco Tião no Rio de Janeiro.
Prezada e moderna urna, nos vemos neste domingo em Santa Cecília, na
Pauliceia que um dia já foi desvairada. Vai ser lindo, apesar do meu
ressentimento democrático. Depois de te tocar, com o carinho da primeira
vez, continuarei essa D.R. imaginária no boteco do Fuad, ali na esquina
da nossa zona eleitoral preferida. Quantas vezes cantei vitórias ou
chorei derrotas de véspera desobedecendo a lei seca. Quantas vezes
roguei praga em quem votava diferente.
Agora lamento apenas pelo desrespeito com o meu voto do ano 2014. Um
voto aberto e declarado que me custou caro, eu diria um voto mais
explícito do que o Marlon Brando e a Maria Schneider em “O último tango
em Paris” (1972). Deixa quieto, passa a manteiga da legalidade e
confirma. O bom é que vamos nos ver de novo neste domingo. Chega de
ressentimento patriótico, sei que nada poderias fazer para manter
aqueles milhões de votos válidos. A tramoia parlamentar era inegociável,
uma pena.
Juro, urninha modernete, encerrarei por aqui a ladainha, que seja feita a
tua vontade, embora no Pastoril do Velho Faceta eu sempre brinque com a
turma do Cordão Encarnado.
Vai ser lindo te rever, apertarei com gosto, sem perder a delicadeza
jamais. Como aquele sexo caliente depois da briga no relacionamento.
*Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (editora Companhia das Letras), entre outros livros. Comentarista do programa “Papo de Segunda” (GNT).
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