*Por Leonardo Boff
Quando há uma crise generalizada como esta que estamos vivendo e
sofrendo sem perspectiva de uma saída que crie consenso, não temos outra
alternativa senão voltar à fonte do poder político, expressão da
soberania de um povo. Temos que resgatar todo o valor do primeiro artigo
da Constituição, parágrafo único:”Todo poder emana do povo”.
O povo é, pois, o sujeito ultimo do poder. Em momentos em que uma
nação se encontra num voo cego e perdeu o rumo de seu destino, este povo
deve ser convocado para dizer que tipo de país quer e que tipo de
democracia deseja: esta com um presidencialismo de coalizão, feito de
negócios e negociatas para garantir uma suficiente base parlamentar ou
uma democracia de verdade, na qual os representantes eleitos representam
efetivamente os eleitores e não os interesses corporativos e
empresariais que lhe garantiram a eleição? Urge avançar mais: precisamos
dar forma política à vontade de participação por parte do povo
organizado nos destinos do país, mostrada nas jornadas de 2013.
No fundo volta a questão básica: vamos nos alinhar aos que detém o
poder mundial (inclusive de matar todo mundo) ou vamos construir o nosso
caminho autônomo, soberano e aberto à nova fase planetizada da
humanidade?
O primeiro projeto prolonga a história ocorrida até os dias de hoje:
desde a Colônia, passando pelo Império e pela República sempre fomos
mantidos subalternos. Os ibéricos não vieram para fundar aqui uma
sociedade mas para montar uma grande empresa internacional privada, uma
verdadeira agro-indústria, destinada a abastecer o mercado mundial.
Essa lógica perdura até os dias atuais: tentar transformar nosso
eventual futuro em nosso conhecido passado. Ao Brasil cabe ser o grande
fornecedor de commodities sem ou com parca tecnologia e valor agregado,
num processo de recolonização.
Lamentavelmente este é o intento do atual governo interino,
especialmente do PSDB que claramente se alinha a um severo
neoliberalismo que implica diminuição do Estado, ataque aos direitos
sociais em favor do mercado e uma inescrupulosa privatização de bens
públicos como o pré-sal entre outros.
O projeto alternativo finca suas raízes na cultura brasileira e no
aproveitamento de nossa imensa riqueza que nos pode sustentar como nação
independente, soberana e aberta a todas as demais nações. Seríamos uma
grande potência, não militarista, nos trópicos, com uma economia, entre
as maiores do mundo com um mercado interno vigoroso.
Curiosamente, as jornadas de junho de 2013 e posteriormente,
mostraram que o povo percebeu os limites da formação social para os
negócios. Quer ser sociedade, quer outras prioridades sociais, quer
outra forma de ser Brasil. Numa palavra, quer ser uma sociedade de
humanos,de cidadãos ativos, coisa diversa da sociedade de negócios. Tal
propósito implica refundar o Brasil sobre outras bases.
Mas quem escutou, de verdade, o clamor das ruas, especialmente, dos
jovens? Efetivamente ninguém, pois tudo ficou mais ou menos como antes.
O que, na verdade, nos faltou em nossa história, foi uma verdadeira
revolução como houve na França, na Itália e em outros países que desse
um novo rumo ao Brasil com novos sujeitos de poder. Mas o tempo das
revoluções passou. Hoje preferimos falar em processos de transformação,
como tentei elaborar junto um cosmólogo canadense, Mark Hathaway em
nosso livro O Tao da libertação:explorando a ecologia da transformação
(Vozes 2012, livro premiado nos USA com a medalha de ouro em ciência e
cosmologia). Mas as transformações atingem o coração do sistema e dão
origem a um novo paradigma de exercício de poder visando antes de tudo a
preservação das bases ecológicas que sustentam nossa vida, a
civilização, a natureza e o planeta Terra, tida como um super Ente vivo.
Mas este seria outro tema que que nos levaria longe.
Importa reconhecer que a história nunca é uma continuidade, algo que
cresce organicamente de uma para outra coisa. Ela é feita de
descontinuidades e rupturas radicais, transformações que derrubam uma
ordem e instauram uma nova.
No Brasil, como sempre lamentava Celso Furtado, nunca tivemos essa
ruptura. O que predominou em todo o tempo até hoje é a política de
conciliação entre os poderosos e as elites que controlam o ter, o saber e
o poder. O povo sempre ficou de fora como incômodo aos acertos feitos
por cima e contra ele.
O que está ocorrendo agora com a tentativa de impeachment da
Presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita, é de dar continuidade a
esta política de conciliação das elites, do capital rentista e
financeiro, daqueles 10%, segundo o IBGE de 2013 que controlam 42% da
renda nacional, articulados com o judiciário e com a grande mídia
conservadora. Jessé Souza do IPEA os enumera: são 71.440 super ricos
que, por trás manejam o Estado e os rumos da economia na perspectiva de
seus interesses, absolutamente egoístas, conservadores e anti-populares.
Não lhes importa a perversa desigualdade social, uma das maiores do
mundo, que se traduz em favelização de nossas cidades, violência
incontrolável, geração de humilhação, preconceito e degradação social
por falta de infra-etrutura, de saúde, de escola e de transporte.
Se o Brasil foi fundado como empresa e para continuar como empresa
transnacionalizada, é hora de se refundar como sociedade de cidadãos
criativos e conscientes de seus valores.
O meu sonho é que a atual crise com o sofrimento que encerra, não
seja em vão. Que ela crie as bases para o que Paulo Freire chamaria de
“o inédito viável”: nunca mais coalização entre os poucos ricos de
costas para as grandes maiorias. Que se busque viabilizar o que
prescreve a Constituição em seu terceiro artigo (IV):”promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.”
*Leonardo Boff é articulista do Jornal do Brasil online e escritor.
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