"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Como sair da perplexia e da paralisia em tempos de ''fascismo neoliberal'', Por Francisco Fonseca

Numa palavra, as estratégias para ir além da perplexia e para superar a paralisia se dá por meio do que Antonio Gramsci denominou de "guerra de posições", isto é, a conquista de espaços político/ideológicos, em lugares e posições distintos, de forma paulatina, a ponto de criar forças para constituir-se como contra-hegemonia.


O "fascismo neoliberal" (autoritarismo totalitário modelado por interesses do capital contra os trabalhadores) vivenciado pelo Brasil e por outros países possui pressupostos e estratégias simultânea e paradoxalmente simples e complexos. Compreendê-los nos ajuda a estabelecer novas táticas e estratégias para derrotá-lo. Alguns desses pressupostos e estratégias podem ser assim definidos:

a) é altamente mobilizador de grupos quanto à agenda pública e sobretudo governamental, por meios diversos, dos quais se sobressaem a utilização massiva das redes sociais;

b) volta-se à interdição do debate por pautar, ressignificar e fabricar, intensa e incessantemente, temas, questões, valores e imagens com vistas a fidelizar seguidores e empurrar opositores "para as cordas", deixando-os em posição meramente reativa, à mercê portanto dos intuitos de seus emissores;

c) produz intencionalmente o caos, espécie de "transe sócio/político", voltado tanto à construção/desconstrução de narrativas como à viabilização de atos concretos, sobretudo quando se domina o aparelho de Estado, caso de Bolsonaro;

d) tensiona as instituições, por meios distintos, levando ao limite a tentativa de sua destruição (simbólica ou mesmo física), procurando derrogá-las, cooptá-las e desmoralizá-las;

e) provoca intencionalmente "confusão política" ao expressar posições esdrúxulas, anti-civilizatórias, bombásticas, escatológicas, supostamente religando-se ao "senso comum" dos indivíduos, aparecendo como "um deles", agora no poder;

f) transita nas "zonas cinzentas", também chamadas de "porões", das redes sociais, das milícias, de segmentos fascistas, de setores das polícias, da imprensa "marrom" e de parte significativa das Forças Armadas;

g) representa paradoxalmente dois grandes grupos de interesses: o grande capital (o chamado "Capital Global"), mas particularmente o rentismo (sintetizado pela figura de Paulo Guedes) e os "interesses paroquianos ilícitos", aqueles situados nas mais distintas formas de contravenção, incluindo-se nos níveis locais. De forma transversal, expressa o poder do grande capital internacional e de todas as elites econômicas, desde sempre contrárias à sociedade de direitos, mas associadas aos interesses sintetizados na lógica das milícias;

h) volta-se à destruição: do Estado de Direito Democrático e do Estado de Bem-Estar Social, informado pelo neo(ultra)liberalismo canhestro: doutrinariamente fundado pelas escolas austríaco e de Chicago;

i) não se baseia em coerência, argumentos, lógicas, racionalidades e evidências: distorce sistematicamente a realidade, criando sua própria, virtual, construída profissionalmente como "real". É nesse sentido que todos os objetivos afirmados nessa "realidade criada" são exatamente seu inverso no mundo real: o combate à corrupção e aos privilégios é, na verdade, o aprofundamento dos já existentes e a criação de novos, a afirmação da soberania representa sua destituição total, em todos os sentidos, a defesa da democracia implica sua completa destruição e assim sucessivamente;

j) sabedor de que seu projeto é inviável eleitoralmente, distorce o sistema eleitoral de tal forma, a ponto de se tornar simulacro do mais remoto processo de representação política. Estrutura-se nas mais distintas forma de fraude, inclusive a eleitoral, como é o caso de Bolsonaro.

Os articuladores do "fascismo neoliberal" – Steve Bannon à frente – têm clareza de que seu projeto é insustentável, pois criador de misérias profundas, desarticulador da sociedade organizada e destruidor do Estado Nacional. Daí a necessidade de, tal como "predadores famintos" que o são, dizimarem o mais rápido possível as riquezas nacionais, transferindo-as ao exterior e às elites, isto é, impondo o conflito distributivo autoritária e inteiramente pró-capital. Mas postulam se tornar "direitas eleitoralmente viáveis" por meio da manipulação permanente das "mentes e dos corações", utilizando-se para tanto das armas mais desonestas de debilitação das consciências. Tal manipulação – na verdade, o projeto de Goebbels atualizado – não se circunscreve ao inconsciente coletivo, pois o induz à ação, mobiliza-o de tal forma que os faz agredir, por meio dos grupos fidelizados, simbólica e efetivamente instituições, pessoas, grupos e ideias levando a esses o "terror". Utilizam-se para tanto das "guerrilhas digitais" de forma altamente profissional e milionária.

Representam portanto estratégias políticas totalitárias, uma vez que articulam-se binômios que, embora antagônicos, parecem se complementar, tais como: convencimento ideológico e ação política; interdição do debate público e atonia social; caos e "organização" fascista; brutal desconstrução da sociedade, do Estado/dos elementos civilizatórios e valores tradicionais; privatização do Estado e "estatização" da vida privada; entre outros.

Mais ainda, "totalizam-se" os indivíduos e a sociedade "civil" num enredo de declarações, embates, provocações, destilação de ódios e recalques, ressignificação permanente de valores – incluindo-se os civilizatórios –, de forma infrene e permanente, mas que são acompanhadas efetivamente por ações que produzem impactos na vida de opositores políticos e dos trabalhadores. Totaliza-se, dessa forma, de envolver, como num ciclone, a todos, que se tornam "presas fáceis" desse caos intencionalmente produzido, pois produto de estratégia e tática altamente profissional e vigorosamente financiada, reitere-se. Nesse sentido, posições de grupos sociais, prognósticos, empregos, análises políticas e o futuro de gerações tornam-se "fora do lugar", incompreensíveis, "anômicos".

É nesse último sentido que a análise política deve renovar suas categorias políticas, conceituando outras gramáticas para pensar a política, a democracia, a representação, a luta social e de classes, o Estado Nacional e a soberania, entre tantos outros conceitos que nos acostumamos a pensar durante décadas. Ver, nesse sentido, artigo que escrevi neste portal em dezembro de 2018: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-dissonancia-na-analise-politica-perante-a-des-politica-e-a-des-democracia/4/42867

Afinal, os elementos estruturais que estão na raiz desse processo, para além das estratégias políticas, referem-se à imposição da quarta revolução industrial à divisão internacional do trabalho (aniquilação da mais remota soberania dos Estados periféricos), à disputa por recursos naturais, à relação entre Capital e Estado (com total subordinação desse último ao primeiro, com formas e arranjos distintos dependendo de cada sociedade), à derrogação do trabalho organizado e protegido (e, logo, a subordinação radical dos trabalhadores, agora pulverizados e precarizados, ao Capital), à luta imperial (notadamente entre EUA e China), entre outros.

Deve-se notar que o Brasil passa, nesse momento, pela combinação explosiva de cinco grandes fenômenos, todos eles, com exceção do primeiro, resultante da ação da direita: desindustrialização, desestatização, desnacionalização, financeirização e desestruturação do Estado de Bem-Estar Social e dos direitos trabalhistas. Claramente a democracia, reitere-se, não faz parte do roteiro do fascismo neoliberal.

Dessa forma, os atores sociais protagonistas já não são os mesmos – caso dos trabalhadores organizados, dos sindicatos e dos movimentos sociais transversais –, o que implica repensar como as esquerdas poderão falar a tais grupos. Deve-se notar que a precarização radical das condições de trabalho, resultado desses processos estruturais, paralelamente ao desmonte do Estado de Bem-Estar Social e à ideologia do "empreendedor meritocrático individual", são o húmus alimentador do fascismo neoliberal da extrema direita internacional. Xenofobia, homofobia, misoginia, racismo, anti-esquerdismo e todas as formas de preconceito são elementos simbólicos mobilizados pelos grupos de extrema direita internacional como resposta "insana" (mas "racional" pela lógica do fascismo neoliberal) às sociedades em transformação estrutural.

No caso brasileiro, a miscelânea entre igrejas neopetencostais, com sua "teologia da prosperidade", as chamadas "facções criminosas", e os grupos do "terceiro setor", cada qual com suas características e objetivos que, embora distintos, confluem para a defenestração do Estado, dos valores comunitários, da democracia (os primeiros dois grupos) e da sociedade de direitos. Conscientemente ou não, abriram espaço para o discurso da extrema-direita, inclusive eleitoral, que tem convencido parte significativa dos trabalhadores pobres, das mulheres e dos negros a aderirem a causas e estratégias que lhe são extremamente danosas.

Os "burocratas do nível de rua", isto é, aqueles que atuam na ponta do sistema estatal, sentem-se referendados em determinadas práticas discricionárias e inconstitucionais do comando político nacional – e mesmo estadual, caso de boa parte dos estados do sul e do sudeste no Brasil –, destruindo valores e espaços democráticos nos níveis locais.

As esquerdas, os democratas, os progressistas e os que pregam a civilização devem ter a compreensão do fenômeno do "fascismo neoliberal" para irem além da perplexia e sobretudo superarem a paralisia. Para tanto, o primeiro passo é compreender o modus operandi dessa "ideologia de mobilização e destruição".

Mas a compreensão deve implicar ações nas mais distintas arenas, como veremos abaixo, sem a pretensão de esgotar todas as possibilidades de ação política:

- nos meios digitais (redes sociais), uma vez que representam novo lócus de disputas. Combater a "realidade virtual criada" sem ser apenas reativo às pautas da direita, em prol da defesa, de forma criativa e lúdica, dos valores democráticos e igualitários, em contraste às proposições destrutivas do fascismo neoliberal.

- nas organizações sindicais, que se mantêm importantes, embora em brutal processo de encolhimento por pressão política provinda do fascismo neoliberal. Deve-se estimular a fusão de sindicatos, seu caráter combativo e voltado às pautas ao mesmo tempo específicas e gerais dos trabalhadores (caso da oposição à "reforma" da previdência, entre outras). O esclarecimento – associado a formas operacionais de facilitação – do pagamento da contribuição sindical pelos trabalhadores aos seus respectivos sindicatos é igualmente tarefa urgente;

- na criação de meios alternativos de comunicação: não apenas digitais, mas sobretudo que atinja o trabalhador precarizado de forma direta (caso, por exemplo, da entrega gratuita de pequenos informativos impressos nos locais de grande fluxo de trabalhadores, à guisa do que o jornal Brasil de Fato fez, tempos atrás, ao entregar gratuitamente uma página frente e verso de notícias e comentários nas estações de metrô), o que implica linguagem simples e vinculada ao cotidiano do "precariado". A comunicação com esse "novo/velho" trabalhador precarizado (nas diversas modalidades) necessita ser precedida do conhecimento sobre seu cotidiano, valores, angústias e expectativas. O financiamento a essas publicações, que necessitam ser constantes e fundamentalmente contra-hegemônicas, pode ser proveniente de campanhas ao estilo "catarse" em associação com sindicatos, movimentos sociais e outras mídias alternativas. Trata-se de processo coletivo de produção de conteúdo objetivo, didático e voltado aos que vivem do trabalho em suas diversas formas e (in)formalizações.

- no fortalecimento dos movimentos sociais, para que falem para os sem emprego, autônomos, informais, com ocupações "precárias", caso da relação entre movimentos por habitação, cuja vinculação à renda é direta, entre inúmeras outras possibilidades. Deve-se, portanto, buscar criativamente a organização dos "desorganizados, precarizados e pulverizados", que se enfraquecem na individualização. Numa palavra, trata-se de combinação de estratégias que articulem as formas de ser antigas e novas do trabalho, assim como a complexa e contraditória relação capital/trabalho, tanto no que diz respeito aos perfis desses trabalhadores como ao (in)consciente coletivo com vistas a unir minimamente o que o grande capital, apoiado por governos protofascistas, caso do Brasil, buscam enfraquecer ao limite. É nesse sentido que se pode recuperar a adesão dos trabalhadores que votaram iludidos em Bolsonaro e que, arrependidos, necessitam ser incorporados ao discurso político e sobretudo demonstrar a eles que há saídas políticas – e não religiosas, místicas, individuais e apolíticas – à sua condição.

- no tensionamento das instituições, por meio de ações institucionais em todas as esferas, aliadas, sempre que possível, por manifestações de rua e também digitais. Deve-se lembrar que, mesmo quando minoritários, pessoas e grupos podem fazer a diferença se se organizarem, atuarem em conjunto e utilizarem todos os recursos institucionais como forma de obstruir a destruição fascista neoliberal em curso, garantir direitos adquiridos, cobrar punição dos que abusam da autoridade e não cumprem regras e leis, entre outras formas. No Poder Judiciário, por exemplo, há inúmeros promotores, procuradores, juízes, desembargadores, assim como operadores do direito, que não compactuam com a fascistização do Estado, tendo em vista o paralelismo que se pode fazer do Brasil contemporâneo com a República de Weimar.

- na permanente denúncia internacional quanto à corrosão das instituições democráticas pelo fascismo neoliberal, em todos os fóruns (acadêmicos, governamentais, institucionais, multilaterais, midiáticos, políticos, sociais, entre outros), em paralelo à sátira e às mais distintas manifestações culturais, sobretudo no Brasil, mas também no exterior.

- na esfera política, a busca por unidade, tenha ou não o nome de "frente ampla", desde que voltada à defesa da democracia política e social, nas mais distintas arenas (parlamentos, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais progressistas, distintas formas de representação, entre outras), implicará combate mais estruturado e menos reativo e pulverizado, como se tem observado. A via institucional dos sistemas partidário e eleitoral não pode ser desprezada, pois pode produzir flancos, resistências, contrapoderes e mensagens políticas que alterem a correlação de forças. Mais ainda, embora estejamos sob Estado de Exceção desde o golpe de 2016, trata-se de situação eivada de contradições – inclusive no interior da aliança golpista –, uma vez que o processo de destruição da economia, dos direitos, da soberania e da democracia (que vem do alto escalão e chega aos "burocratas do nível de rua") tem impactado rapidamente os trabalhadores. A direita, como se sabe, tem enormes dificuldades eleitorais, devido ao rastro de destruição que promove, o que explica sua permanente ação sob a forma de "fraudes": casos, entre outros, do golpe parlamentar contra a presidente Dilma, da Lava Jato como "Estado de Exceção dentro do Estado", da fraude da "facada" e do caixa dois/fake News da campanha Bolsonaro, em paralelo às fraudes midiáticas promovidas ilimitadamente pela grande mídia. Se novas fraudes de dimensões e formas inéditas não ocorrerem até as eleições municipais do ano que vem – certamente a direita tentará uma vez mais essa via –, o processo eleitoral deixará de ser intoxicado pelo fascismo da Lava Jato, cuja decrepitude após o escândalo desnudado pelo Intercept se dá a olhos nus, embora não se saiba seu desfecho, e potencialmente tenderá a ser favorável às esquerdas e centro-esquerdas: desde que superem divergências e se mantenham unidas, também eleitoralmente, em prol da derrota da direita. Em outras palavras, poderá representar brutal derrota ao golpismo, a começar pelo bolsonarismo. Portanto, a via institucional (partidária/eleitoral, judiciária, fendas na mídia tradicional), aliada ao apoio popular, social, das ruas, poderá representar dimensão importante na correlação de forças, mas sem jamais esquecer que estamos vivenciando o Estado de Exceção, com participação direta das Forças Armadas (embora com contradições) e do imperialismo estadounidense. Dessa forma, a via institucional jamais poderá ser a única via a alterar as correlações de força.

Numa palavra, as estratégias para ir além da perplexia e para superar a paralisia se dá por meio do que Antonio Gramsci denominou de "guerra de posições", isto é, a conquista de espaços político/ideológicos, em lugares e posições distintos, de forma paulatina, a ponto de criar forças para constituir-se como contra-hegemonia. O empobrecimento brutal, a desigualdade profunda, o desemprego desestruturante, a derrogação dos direitos, a violência e a falta de perspectivas poderão ser carreados para os partidos políticos, os movimentos sociais, (também) para os sindicatos, para a comunicação baseada nos interesses dos trabalhadores – enfrentando-se a "guerra suja" bolsonarista inspirada em Steve Bannon –, entre outras velhas e novas formas de organização. Não se trata de esperança e sim da análise da realidade, uma vez que a direita não tem nada a oferecer aos trabalhadores que não a violência, o ódio e a "ideologia barata" que apenas humilha e destrói os que vivem do trabalho: demonstrar isso aos trabalhadores é uma chave importante da ação política. Setores empresariais e das classes médias superiores muito possivelmente manterão suas apostas na direita, mas representam minoria a ser encarada como tal dada a nova correlação de forças que se quer empreender.

Por fim, nenhum progressista pode se deixar abater pelo caos intencionalmente criado e pela antiética/estética da destruição. Para tanto, compreender o significado e o modus operandi da (extrema)direita e unir-se politicamente nas mais distintas esferas, mobilizar os progressistas de formas diversas, ocupar criativamente espaços políticos, protestar, reagir e resistir.

A tarefa é árdua, possivelmente geracional, mas sem luta inteligente jamais haverá direitos!


*Francisco Fonseca é professor de ciência política da FGV/Eaesp e PUC/SP



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