*Por Paulo Martins, para Jornal da USP
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Paulo Martins – Foto: Marcos Santos/ USP Imagens |
Após oito meses de governo algo deve ser
dito: o padrão comportamental do presidente é absolutamente coerente. Afinal
não há uma semana sequer que não sejamos pegos “de assalto” por uma fala que
não possa ser considerada intempestiva, pouco qualificada, desmedida, ou mesmo,
inconveniente. São “tiros para todos os lados”, com a devida vênia. Ainda que
“seu alvo predileto” seja um espectro político específico – a esquerda – e o
episódio com os governadores do Nordeste é paradigmático[1],
antigos aliados ou atuais colaboradores e parceiros também são “alvejados” por
seu fel. Gustavo Bebiano, Alberto Santos Cruz, Ricardo Vélez Rodrigues e
Alexandre Frota são exemplos notáveis. Qual seria o próximo? Há quem aposte na
pasta da Justiça, já que os atos contra a autonomia da Receita Federal, da
Polícia Federal e do extinto Coaf afetam diretamente o “superministro” Moro.
Entretanto, mesmo que seja típico de
Bolsonaro personalizar os ataques embebidos com sua atrabílis, suas ações
somenos muita vez causam espanto, já que diante de uma crise sem precedentes no
emprego – os 13% são respeitáveis –, com uma saúde em frangalhos – o SUS está
em perigo – e uma educação vilipendiada – é melhor nem comentar –, o presidente
pauta seu dia a dia numa agenda completamente deslocada de problemas reais do
País. Afora o fato de que paradoxalmente indo por esse caminho acaba por
destruir algo que havia sido construído para o bem da população: velocidade nas
estradas, cadeirinhas de criança nos automóveis, a questão dos armamentos, a
embaixada para “o seu número 3”, o deputado Eduardo, censura na Ancine, as ONGs
incendiárias, etc. Já nos habituamos ao blá-blá-blá, mas sexta-feira, 23 de
agosto, houve um repique de panelas.
Limitasse Jair Messias Bolsonaro a
operar ações apequenadas no cenário do comezinho nacional, menos pior, mas seus
vitupérios e impropriedades internacionais solapam a tradição das relações
exteriores brasileiras, respeitadíssima no concerto das nações. Desqualificar e
vituperar o possível próximo presidente da Argentina, Alberto Fernández –
“bandidos de esquerda começaram a voltar ao poder”[2] –,
o cancelamento do encontro com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian a fim de
dar conta de sua “urgência capilar”[3],
são alguns exemplos de como não fazer política internacional. Entretanto o pior
haveria de vir: as bravatas contra a Alemanha de Angela Merkel[4] e
a Noruega de Erna Solberg[5],
com a questão do Fundo Amazônia, eram a ponta do iceberg que
culminaria na maior crise internacional que o Brasil já vivenciou. Às vezes o
“tiro sai pela culatra”. E isso um bom militar saberia. Sabe um miliciano
qualquer. Hoje estamos à beira de assistir ao malogro do acordo União Europeia
e Mercosul que foi construído nos últimos anos. Mas vejamos. Embora nesse caso
a boca-rota tenha levado a um grande problema, parece-me que no cotidiano suas
falas encobrem uma estratégia de “governo” que se deseja Estado. Isso sim um
problema terrível, quem não se lembra da aula de história: “L’État, c’est moi”?.
Há quem diga que a boca de trapo desnuda
idiossincrasias, outros afirmam despreparo, alhures afirmam que são “gozações”,
“tiração de sarro”, mas Frota na semana passada foi um pouco mais forte, “um
idiota ingrato que nada sabe”[6].
Em recente artigo no El País, Juan Arias afirma quanto à linguagem de
Bolsonaro: “Desde o surgimento da psicanálise, e depois de Freud e Lacan,
conhecemos muito bem o perigo contido na linguagem, que nunca é inocente,
porque também revela o abismo do nosso interior. […] Nada seria pior do que
tomar suas bravatas e loucuras linguísticas como algo sem importância a que
deveríamos nos acostumar. Pode ser trágico”[7].
Acredito exatamente nisso. Entretanto, assomo às falas certas ações que
conspiram pari passu. Todo esse aparato que, aos olhos de pessoas
esclarecidas, pode parecer apenas motivo de galhofa, é, antes de qualquer
coisa, caso pensado, projeto estratégico, cortina de fumaça.
Porém não quero dizer que estas ações e
falas de Bolsonaro não afetem o Brasil, não destruam aparelhos do Estado ou não
limitem ações governamentais, mas, antes de quaisquer efeitos danosos maiores,
essas obnubilam as reformas de cunho estrutural cuja característica primeira é
a redução do Estado, o tornando ínfimo, como é do gosto ultraliberal. O que
seguramente afeta a maior parte da população brasileira – somos um pobre país
rico –, pois que essa depende de políticas de Estado em diversas esferas:
saúde, educação, habitação, segurança, trabalho, previdência são apenas
algumas.
O sucateamento das universidades
federais e das duas agências federais de fomento, Capes e CNPq, literalmente
aniquila o sistema de educação e de pesquisa no País. Não imaginemos que esse
projeto está apenas limitado ao desprezo do presidente ao meio universitário
por conta de uma agenda pessoal, ideológico-religiosa – não que isso não
exista. Na verdade, o “Future-se” é o “braço armado” do mercado na “guerrilha”
contra a educação pública, principalmente com implemento das parcerias entre as
IFES e as organizações sociais (OSs) que irão fraudar, fraturar, por fim,
“eliminar” a autonomia universitária garantida nos artigos 205 e 206 da CF[8].
Por seu turno, reforma da Previdência,
cuja “economia” para os cofres seria da ordem de 1 trilhão de reais, tem no
estrato social daqueles que perfazem entre um a cinco salários mínimos – “os
privilegiados” – a “economia” em torno de 600 bilhões de reais, que cumulada
com o sistema de capitalização – esse “a menina dos olhos” de Paulo Guedes –,
um presente ao mercado financeiro, não só diminuirão o tamanho do Estado, mas o
entregarão à iniciativa privada, perpetuando as graves distâncias entre esse
grupo – a maioria da população – e os super-ricos, esses, sim, intocados pela
reforma previdenciária.
Devemos ficar atentos, pois “a mãe de
todas as reformas”, como é conhecida, começa a tramitar no Congresso. Se a
reforma tributária vier para qualificar a cobrança de impostos, amparando a
premissa de “quem ganha mais, paga mais” seja implantada ou diferenciando os
conceitos de salário e renda, regulando a aplicação dos recursos arrecadados,
corrigindo as distorções da tabela do IRPF, criando novas alíquotas para os
mais ricos, não creio que haverá alguém efetivamente contra, a não ser os
privilegiados pelo atual sistema tributário brasileiro que indubitavelmente
existem. Mas, nas atuais circunstâncias, isso seria fechar um acordo com elfos e
hobbits. Como não creio em seres, tanto pior…
Sintetizando, ainda que certas falas e
atos de Bolsonaro possam e devam ser alvos de chacota como fez o deputado
Marcelo Freixo[9] –
perguntado se o presidente falaria dia sim, dia não apenas – quando da proposta
daquele para redução da poluição ambiental[10];
ainda que algumas vezes possam se tornar um imbróglio internacional com
consequências devastadoras[11];
ainda que sinalizem muitas vezes para um desvio que, pautado por discurso
moralizante, se associa ao escatológico e ao sexual[12],
na maior parte das vezes seu discurso e sua ação são absolutamente descolados
de algo útil ou eficaz para seu governo e para o Estado, entretanto ocupam um
enorme espaço midiático, o que acaba por encetar desvio do olhar atento dos
cidadãos para as reformas que estão claramente desestruturando o Estado
brasileiro e que, certamente, irão produzir danos provavelmente duradouros.
[1] https://oglobo.globo.com/brasil/daqueles-governadores-de-paraiba-pior-o-do-maranhao-diz-bolsonaro-23820801
[2] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/08/bandidos-de-esquerda-comecaram-a-voltar-ao-poder-diz-bolsonaro-sobre-argentina.shtml
[3] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/08/chanceler-frances-ironiza-urgencia-capilar-de-bolsonaro.shtml
[4] https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/08/14/bolsonaro-manda-merkel-reflorestar-alemanha-com-dinheiro-suspenso.htm
[5] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/15/bolsonaro-sugere-a-noruega-usar-verba-do-fundo-amazonia-para-reflorestar-alemanha.ghtml
[6] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/bolsonaro-nao-e-burro-mas-um-idiota-ingrato-que-nada-sabe-diz-alexandre-frota.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newsfolha
[8] Cf.
meu artigo neste jornal: “Future-se ou devoro-te”, de 31 de julho de 2019. (https://jornal.usp.br/artigos/future-se-ou-devoro-te/).
[10] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/09/bolsonaro-sugere-fazer-coco-dia-sim-dia-nao-para-reduzir-poluicao-ambiental.ghtml
[11] https://oglobo.globo.com/economia/fogo-na-amazonia-macron-diz-que-bolsonaro-mentiu-europa-ameaca-retaliar-brasil-23897769?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newstarde
[12] https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2019/08/16/por-que-bolsonaro-fala-tanto-de-coco-psicanalista-christian-dunker-explica/
*Paulo Martins é professor e
vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP)
Fonte: Publicado no Jornal da USP
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