Hannah Arendt fez uma distinção crucial entre a ditadura e o totalitarismo. Segundo ela, nas:
“... ditaduras modernas como novas formas de governo, nas quais
ou os militares tomam o poder, abolem o governo civil e privam os
cidadãos de seus direitos e liberdade políticos, ou um partido se
apodera do aparato de Estado às custas de todos os outros partidos e
assim de toda a oposição política organizada. Os dois tipos significam o
fim da liberdade política, mas a vida privada e a atividade não
política não são necessariamente afetadas. É verdade que esses regimes
em geral perseguem os opositores políticos com grande crueldade, e eles
estão certamente muito longe de ser formas constitucionais de governo no
sentido em que passamos a compreendê-las – nenhum governo
constitucional é possível sem que sejam tomadas medidas para assegurar
os direitos de uma oposição, mas eles não são criminosos no sentido
comum da palavra. Se cometem crimes, eles são dirigidos contra inimigos
declarados do regime no poder.” (Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2010, p. 95)
Num regime totalitário, as coisas são diferentes.
“A sociedade totalitária, em oposição ao governo totalitário, é
na verdade monolítica; todas as manifestações públicas, culturais,
artísticas e eruditas, e todas as organizações, os serviços sociais e de
bem-estar, até os esportes e o entretenimento são ‘coordenados’. Não há
cargo nem emprego de relevância pública, das agências de propaganda ao
judiciário, da representação no palco ao jornalismo esportivo, do ensino
primário e secundário às universidades e sociedades acadêmicas, em que
uma aceitação inequívoca dos princípios regentes não seja exigida. Quem
quer que participe da vida pública, independentemente de ser membro do
partido ou das formações de elite do regime, está implicado de uma
maneira ou outra nas ações do regime como um todo.” (Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2010, p. 96)
O que se esboçando no Brasil não é uma ditadura e sim um regime
totalitário. Isso fica bem claro quando levamos em consideração a
ambição totalizante daqueles que pretendem preservar e/ou aprofundar o
sistema de poder criminoso que assaltou o poder em 2016. É essa ambição
que explica a prisão de pessoas portando faixas com o nome de Lula, a
punição administrativa imposta pela prefeitura de São Paulo ao PT por
causa do showmício na Av. Paulista, a proibição pelo TSE do uso na
campanha de Haddad da expressão “eu sou Lula”, a perseguição a diversos
professores universitários por razões políticas, a criminalização do ato
contra a escalada repressiva da PF que levou ao suicídio do reitor da
Universidade de Santa Catarina, a sabotagem virtual do grupo de mulheres
contra Jair Bolsonaro que foi criado no Facebook e, é claro, a
pretensão do vice dele de fazer uma nova constituição sem a participação
do povo.
Se levarmos em consideração esse contexto, é preocupante a insinuação
feita no hospital pelo candidato da extrema direita que dará um golpe de
estado se não for eleito. De fato, Bolsonaro já se comporta como se
fosse dono do poder (ou, pior, como se o poder emanasse de sua augusta
pessoa), o que em tese torna até mesmo desnecessária a eleição. Mais
preocupante ainda é o fato dele estar recebendo apoio da Rede Globo,
algo que faz as outras empresas de comunicação tratarem ele como se ele
não fosse alguém que defendeu abertamente a tortura e um genocídio.
O estranho comportamento dos jornalistas da Rede Globo ao entrevistar
o general Mourão e Fernando Haddad é sintomático. O candidato do PT foi
constantemente hostilizado e interrompido diversas vezes. O vice de
Bolsonaro não foi confrontado por uma vítima da ditadura (estou me
referindo obviamente a Miriam Leitão) nem mesmo quando disse que os
heróis dele são os torturadores e assassinos da ditadura militar de
1964/1988.
Suponho que o clã Marinho acredita que pode controlar Bolsonaro, que
sob o governo dele - caso ele seja eleito ou chegue ao poder pela via
rápida independentemente do resultado das eleições - apenas os inimigos
do regime e da própria Rede Globo sofrerão as consequências. A elite
alemã cometeu o mesmo erro nos anos 1930. O que parecia ser apenas um
governo forte antissoviético rapidamente evoluiu para um regime
totalitário. O preço que foi pago pelas vítimas do nazismo não deixou de
ser cobrado dos próprios alemães. Quando as cidades do Reich começaram a
ser atacadas as bombas incendiárias da RAF e da USAF não fizeram
distinção entre os alemães ricos e os pobres alemães que apoiavam ou
eram compelidos a apoiar o regime nazista.
O nazismo era ferozmente nacionalista e isso garantiu à Alemanha
superar a crise financeira mundial iniciada nos EUA. Os neonazistas de
Jair Bolsonaro batem continência para a bandeira dos EUA e querem
desnacionalizar as empresas e os recursos minerais e petrolíferos
brasileiros. Portanto, o regime neoliberal totalitário que está sendo
diariamente construído nas ruas e nos telejornais não deixará de
produzir um estrago ainda maior na nossa economia.
Os países que conseguiram superar a crise financeira de 2008
(Portugal e Islândia, por exemplo) e aqueles que não afundaram (Rússia,
China e Índia) se recusaram a seguir a cartilha neoliberal que
arrebentou a Argentina de Maurício Macri. As medidas neoliberais
impostas ao país por Michel Temer apenas produziram mais desemprego,
desindustrialização e aumento do endividamento público. A percepção de
que fomos vítimas de um golpe de estado comprometeu a retomada da
economia mediante a atração de novos investimentos estrangeiros.
Nosso país já está diplomaticamente isolado. É uma verdadeira
estupidez acreditar que o cerco diplomático (que tende a aumentar em
razão do descumprimento da decisão válida e eficaz proferida pelo Comitê
de Direitos Humanos da ONU em favor de Lula) será rompido por um regime
neoliberal totalitário, violento e potencialmente genocida que está
lentamente substituindo a Constituição de 1988. Os juízes brasileiros
que aderiram ao golpe de 2016 (e que tornam mais e mais vulnerável a
democracia a cada decisão absurda) parecem ter esquecido uma lição
fundamental:
“Todo esse mundo verdadeiramente humano, que em sentido estrito
forma a esfera política, pode sim, ser destruído pela força bruta, mas
não surgiu da força, e seu destino inerente não é perecer pela força.” (A promessa da política, Hannah Arendt, Difel, Rio de Janeiro, 2008, p. 222)
Antecipando o que pode ocorrer no Brasil, a Embaixada da Alemanha
divulgou um vídeo sobre o que o nazismo fez ao seu país. Vale a pena
conferir.
Os barões da mídia fizeram de tudo para derrubar Dilma Rousseff. Há
pouco mais de dois anos, os comentaristas de TV diziam que era só
derrubar o PT que a economia melhoraria. A economia não só não melhorou
como agravou a crise política. A irresponsabilidade do clã Marinho nas
últimas semanas é evidente. Eles ajudaram a destruir a economia
brasileira com a Lava Jato e comprometeram a higidez do regime
constitucional de 1988 ao apoiar o Impeachment. Agora os filhos do Dr.
Roberto parecem determinado a substituir a farsa do golpe de 2016 por
uma tragédia de grandes proporções.
Os golpistas que tem horror a sangue ainda podem dormir com suas
consciências tranquilas. Eles conseguirão dormir tranquilamente no
futuro?
“O que leva um homem a temer a sua consciência e a antecipação da
presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele vai
para casa.” (Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2010, p. 255)
Todo o mal que barões da mídia têm feito ao Brasil e aos brasileiros
mais pobres é produto de um cálculo racional. Eles não querem pagar
impostos, eles pretendem reduzir os prejuízos e/ou desejam aumentar seus
lucros. A irracionalidade deles, contudo, me parece evidente. Eles
lucraram mais do que os outros brasileiros durante o milagrinho
econômico de Lula e Dilma Rousseff. Impacientes e irracionais, os
comentaristas deles nos telejornais destilam ódio contra Lula e o PT
todo santo dia. Alguns deles já não conseguem esconder que tem medo
pavor de um povo que, apesar de tudo, tem se mostrado pacífico, alegre,
tolerante, paciente e ordeiro. Todavia, em algum momento eles também
serão obrigados a enfrentar suas próprias consciências ao presenciar o
horror que estão criando.
As consciências das vítimas do totalitarismo neoliberal e seus
defensores também irão se levantar para acusar os responsáveis. O
julgamento da mídia brasileira será severo, mas não será injusto.
Injusta é a irresponsabilidade total daqueles que acreditam que as vidas
dos “outros” são indignas e descartáveis.
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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