*Por Aldo Fornazieri
O
atentado contra Bolsonaro não altera, substantivamente, os contornos que
a campanha eleitoral vinha assumindo, mas acelera um aspecto
fundamental que estava sendo desenhado por detrás do pano do teatro
político: a consolidação de uma aliança judicial-militar tendo Bolsonaro
como ponto de convergência e agregando setores amplos das polícias
militares, civis, Polícia Federal e Ministério Público. Bolsonaro
tornou-se, efetivamente, o candidato do Partido do Estado que luta para
desalojar, criminalizar e prender o mundo dos partidos e dos políticos.
Mais do que a facada, esta é a mudança efetiva e perigosa que este
momento da campanha vem consolidando.
O
atentado, de fato, precisa ser repudiado, pois se trata de um ato
injustificável contra a vida do candidato e uma ação incompatível com a
disputa democrática. Como ato isolado, não foi um atentado contra a
democracia. Atentado contra a democracia foi deixar Lula preso e fora
das eleições.
Estabelecida
esta posição de princípio, no entanto, é preciso tentar compreender
racionalmente as motivações do atentado. Tratou-se de uma atitude
individual praticada por uma pessoa exasperada, seja por desequilíbrio
de personalidade ou por radicalismo ideológico. Alguns representantes da
esquerda piedosa tentaram desvincular a conduta do atacante em relação
às ações e pregações de Bolsonaro. Trata-se de um equivoco,
evidentemente.
Bolsonaro,
ao pregar o ódio, também suscita ódio. O ódio é um sentimento
absolutamente normal nos seres humanos, inerente à natureza humana.
Sendo a atividade política uma atividade que atiça paixões, ela também
desencadeia ódios. O ódio, como nos ensinou Maquiavel, pode ser
provocado por más e por boas ações; por homens considerados maus ou por
homens considerados bons. Hitler, Mussulini, Ghandi, Martin Luther King,
Lula etc., por razões diferentes, suscitam ódio em adversários ou em
pessoas comuns.
O
ódio pode, mas não necessariamente, desencadear violência. O ódio é um
sentimento legítimo, que deve ser compreendido. É legítimo, por exemplo,
que o povo pobre e os trabalhadores sintam ódio de Temer e de seu
governo. A esquerda piedosa e cristã parece não compreender isto. Mas,
recorrendo mais uma vez ao maior sábio da política, existem piedades
que, se bem pesadas, são crueldades e existem crueldades que, se bem
julgadas, são piedosas. Não é por acaso que os cristãos e a esquerda
piedosa, ao pregarem a resignação, a piedade e a mansuetude contribuíram
e contribuem para que o mundo permaneça na mão dos malvados.
Ocorre
que Bolsonaro, além de disseminar e suscitar o ódio, prega a violência.
A retórica do candidato é uma retórica violenta. As palavras não são
inocentes. São símbolos carregados de significações que desencadeiam
ações. A retórica de Bolsonaro acerca de mulheres, de negros, de gays e
de adversários políticos são gatilhos que podem disparar a prática da
violência. Quando ele fala em fuzilar petistas do Acre, seguidores do
candidato podem sentir-se autorizados a praticar a violência. O mesmo
ocorre quando ele fala em condecorar policiais que matarem 10 a 20
pessoas em confrontos. Bolsonaro faz apologia explícita à tortura e ao
uso de armas, até mesmo para crianças. Liderados fanáticos ou
desequilibrados tendem a praticar aquilo que entendem sejam autorizações
do líder. Neste e em vários outros aspectos aqui não mencionados,
Bolsonaro tornou-se o epicentro que pode irradiar a violência política e
policial. Precisa ser denunciado e contido antes que seja tarde.
Do
ponto de vista eleitoral, o atentado pode suscitar algum ganho inicial
para o Bolsonaro, mas nada muito significativo. Os seus eleitores podem
ter fidelizado suas intenções de voto, o que não é bom para Alckmin.
Passados os primeiros dias de alta emoção, o eleitorado voltará ao seu
estado normal. Claro, a campanha do candidato do PSL tentará explorar o
atentado eleitoralmente. Os demais candidatos não podem ficar inertes e
na defensiva acerca dessa exploração. É legítimo que denunciam Bolsonaro
como um candidato que faz apologia da violência. Assim, é preciso
perceber que o desdobramento eleitoral do atentado é algo que está em
jogo e dependerá da astúcia, da inteligência e da competência de como
cada candidato jogar esse jogo.
Mas,
volte-se ao ponto inicial. A operação Lava Jato conformou o Partido do
Estado, que agrega a elite judicial, das polícias, das Forças Armadas e
do Ministério Público. A sua primeira manifestação foi uma espécie de
"rebelião do procuradorismo" contra o mundo político e, particularmente,
contra o PT, que naquele momento estava no poder. No seu último
momento, Bolsonaro é o candidato que congrega e unifica essas elites do
funcionalismo estatal, que não se move apenas pelo moralismo, mas também
por ideologia e para manter e ampliar os altos salários e os
privilégios. A natureza dessas elites públicas é conservadora e
antipopular.
Parte
importante do Judiciário e do Ministério Público, além das elites
policiais e militares, aderiram a Bolsonaro na primeira hora, pois ele
expressa a sua visão de mundo autoritária, conservadora e fascistizante.
Na medida em que Alckmin vem apresentando dificuldade para decolar,
Bolsonaro foi se tornando cada vez mais palatável até mesmo para setores
empresariais e para alguns grupos da grande mídia. O autoritarismo de
Bolsonaro foi sinuosamente sento naturalizado por esses setores e agora
procuram legitimá-lo política e socialmente.
Como
Lula não foi morto e enterrado politicamente ao ser preso - pelo
contrário, foi se tornando cada vez mais um paradigma para o eleitorado -
as elites estatais e privadas foram percebendo que as eleições podem se
revestir de ilegitimidade e que o próximo governo poderá ter sua
legitimidade questionada. O projeto Bolsonaro de governo autoritário,
que vinha se manifestando como uma insinuação, ganhou forma e sentido
para essas elites todas como única saída para fazer frente à
continuidade da crise política no próximo governo.
Em
síntese, esse projeto expressa a seguinte fisionomia: de um lado,
autoritarismo e repressão no campo político e social, violência
policial, submissão autoritária do Congresso aos desígnios do governo e
tutela judicial e militar da sociedade e do mundo político; e, de outro,
ultraliberalismo na economia, privatizações e desnacionalização,
continuidade da precarização dos direitos sociais e políticos e
aprofundamento da geração de mão de obra barata nacional pelo desemprego
e pelo subemprego. O modelo político-econômico é o da ditadura militar
chilena de Pinhochet.
Parte
do Judiciário se agregou a este projeto autoritário porque ele lhe deu
origem via Lava Jato, outra parte se agregou porque é fascistóide e, uma
terceira parte, aderiu por covardia e conveniência. Esta última parte
passou a sofrer também a pressão militar, principalmente no que se
refere às decisões acerca da prisão e da candidatura de Lula. As
manifestações de generais e do próprio comandante do Exército, seja no
julgamento do habeas corpus do ex-presidente ou da entrevista que ele
concedeu neste final de semana reiterando que a candidatura Lula não
será aceita, é prova sobeja da tutela militar sobre integrantes de
tribunais superiores acovardados.
O
risco que esse projeto autoritário representa para a retomada do
processo democrático é enorme. Se ele conseguir passar para o segundo
turno o risco aumenta, pois o jogo será outro. Todos os expedientes
legais e ilegais serão usados contra o candidato adversário se essa
hipótese se confirmar. A eleição será outra. Os candidatos do campo
progressista estarão cometendo um grave erro se agirem para ter
Bolsonaro como eventual adversário no segundo turno. Convém lembrar que
na semana passada Haddad e Alckmin foram atacados pelo Ministério
Público. O candidato tucano foi atacado também por Temer. Esses
movimentos não são casuais.
O
golpe fracassou política e moralmente, o que provocou a dispersão e a
divisão de suas forças. A possibilidade de ser derrotado eleitoralmente
com Lula ou sem Lula está produzindo um movimento de reagrupamento, ao
que tudo indica em torno Bolsonaro. Na medida em que a exclusão de Lula,
com toda sua imensa força política e eleitoral, ameaça pender com a
espada da ilegitimidade sobre o pescoço do novo governo, se for do campo
conservador, as elites agora querem construir sua garantia pela via da
tutela judicial-militar.
*Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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