*Por Paulo Pimenta
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Bolsonaro imita arma no hospital (Foto: Reprodução/Facebook) |
O título deste artigo, coincidindo com o
da obra homônima de Jacques Rancière, é relevante porque precisamos ir
além da superficialidade e buscar compreender a complexidade das
relações que exacerbaram a fúria antidemocrática no Brasil. Fenômeno que
emergiu justamente após mais de uma década de expansão democrática no
País, vale ressaltar.
Grande parte da população, pobre e
trabalhadora, quer trazer de volta aquele Brasil com garantia de
direitos, democratização do acesso à saúde, à educação, à moradia. Tanto
que a luta pela liberdade do ex-presidente Lula se transformou em
símbolo da esperança, da resistência à retirada de direitos e de
denúncia à miséria que cresce. Não por acaso, a candidatura Lula atingiu
quase 40% de intenções de voto.
A extrema direita, no entanto, alcançou a
segunda colocação com um discurso de ódio e de defesa da liberação de
armas. O ódio insuflado no processo do golpe de 2016 se converteu em
plataforma política e a eleição virou palco de ataque aos direitos
humanos.
E deu no que deu! Depois de vários
atentados contra a esquerda, veio o também o ataque ao candidato da
ultradireita conhecido por defender a Ditadura e estimular o ódio.
Com esse episódio veio à tona a reflexão
sobre o ódio à Democracia. Um debate fundamental que, até então, não
mereceu atenção das instituições do Estado que, com uma postura omissa,
dão ar de normalidade às recorrentes e graves violações de direitos
humanos no País.
No caminho contrário, temos
reiterado que não há normalidade no atual momento histórico do Brasil. A
violência tem uma origem e é gerada dentro de determinado contexto. A
análise desse contexto nos permite compreender a construção do ódio como
ameaça concreta à Democracia.
Dissemos que a Democracia não comporta o
abuso de poder, a perseguição política, a prisão sem provas. Essa
denúncia foi reconhecida pela ONU, mas rechaçada pelo nosso sistema
judicial interno.
Denunciamos os ditos “cidadãos de bem”
que fecharam estradas para impedir um candidato oponente de entrar em
cidades do interior do País. Reagimos ao grave fato que foi a formação
de milícias armadas para atacar a caravana do ex-presidente Lula no Sul.
Por compreender a gravidade da fabricação
do ódio na sociedade, jamais consideramos “piada” o fato de um grupo de
jovens da classe média, universitários, usar relho para agredir
adversários políticos. Entendemos que os aplausos odientos de
autoridades públicas confirmavam a fascistização de parte da sociedade.
Alertamos o poder público a cada ação
arbitrária e afrontosa às liberdades democráticas. Sempre tivemos
ciência de que a posição inerte das instituições do Estado diante dessas
violências era um fato ainda mais grave.
Em “O Futuro da Democracia”, Norberto
Bobbio alerta para a atenção às regras do jogo com as quais se desenrola
a luta política em determinado contexto, afirmando que aí está um
princípio que distingue um sistema democrático dos não-democráticos.
Usando uma metáfora do autor, podemos dizer que no Brasil passou-se a
considerar lícito que um dos jogadores pudesse levar socos e pontapés.
Deu no que deu! Uma milícia ruralista
disparou tiros contra o ônibus que conduzia dois ex-presidentes, Lula e
Dilma. Não se pode deixar de falar no crescimento de assassinatos no
campo, do feminicídio e da desestruturação de medidas como o combate ao
trabalho escravo.
O que expressaram sobre isso os diversos
setores que, de forma genérica, dizem defender a Democracia? Nada!
Aceitaram esses crimes, enquanto a Democracia se esvaía como um valor e,
por conseguinte, como prática política.
Por óbvio, a intolerância não atingiria
apenas os partidos e os movimentos de esquerda. Não é difícil entender a
relação entre a apologia ao estupro, à tortura, ao racismo, à homofobia
e a crescente violência na sociedade.
Sem qualquer sombra de dúvida, o golpe de
2016 abriu as portas para o ódio à Democracia. Os saudosos da Ditadura
saíram dos porões. Sobre a Comissão Memória e Verdade, o presidenciável
da extrema-direita disse que “quem gosta de osso é cachorro”. Em várias
sessões da Câmara, inclusive no seu voto pelo impeachment em 2016, o
mesmo presidenciável elogiou um notório torturador e, portanto,
criminoso. O desprezo aos direitos humanos se tornou um discurso banal e
corriqueiro.
Deu no que deu! A vereadora Marielle
Franco (PSOL-RJ), foi vítima da fúria antidemocrática. A sua execução,
além do descaso com a punição dos culpados, foi alvo de deboche para
alimentar ainda mais o ódio. Não é exagero dizer que a omissão é
cúmplice e faz o fascismo vitorioso.
Por tudo isso é preciso enfrentar quem
trata a educação em direitos humanos com desprezo, como faz o movimento
de ultradireita “escola sem partido”. É preciso questionar a quem
interessa transformar a eleição em guerra. Um conflito aqui, outro ali,
em vários pontos da América Latina, e perdemos conquistas democráticas. O
que nos torna mais vulneráveis à dominação econômica, ao entreguismo e à
perda da soberania.
É preciso interrogar as instituições
políticas e jurídicas e a mídia sobre o descaso ao recente episódio em
que o presidenciável da extrema-direita estimulou eleitores do Acre a
metralhar petistas. O interlocutor do ódio à Democracia passou impune e,
de dentro do hospital, enquanto se recupera de um atentado, volta a
estimular a violência com sua marca de campanha: o gesto com as mãos
simulando o uso de arma de fogo.
Temos aí os resultados dos episódios
misóginos contra Dilma Rousseff, dos tiros contra a vigília Lula Livre e
tantos outros. Esse é o contexto ao qual veio se somar o ataque ao
presidenciável que ofende mulheres, quilombolas, gays e a todos que
defendem os direitos humanos.
O que precisamos aprender com a história é
que o ódio à Democracia tem como alvo toda sociedade. Não é aceitável
que tal candidato faça um gesto de matar usando as mãos de uma criança,
em total desrespeito ao nosso marco legal de defesa e proteção de
crianças e adolescentes. A Constituição tem sido desrespeitada
consecutivamente! Não podemos fingir que a violência não é estimulada e
usada como instrumento de disputa nestas eleições.
Nesses tempos em que as pesquisas indicam
a derrota da cúpula do golpe no Brasil, a extrema-direita parece melhor
servir ao que Rancière define como a compulsão ao governo oligárquico:
“compulsão a se livrar do povo e da política”.
Essa constatação dá mais nitidez ao
cenário político do “apetite insaciável”. Nessa trajetória de
enfrentamento ao golpe já desmentimos várias farsas antidemocráticas. A
hora é de resistir ao retorno da extrema-direita e daqueles que a ela se
unem para a solapar a Democracia.
Paradoxalmente, não há dúvidas de que o
ódio à Democracia se expandiu à medida em que a própria Democracia se
expandia pelo Brasil. O que temos é um contexto de vale tudo para o
desmonte dos direitos trabalhistas e dos sistemas públicos de saúde, de
assistência e de previdência social.
Sim, nós repudiamos veementemente a violência!
Ninguém merece ser executado! Ninguém merece ser torturado!
Ninguém merece ser estuprado! Ninguém merece ser agredido! Ninguém merece ser esfaqueado!
Ninguém merece ser injustiçado!
*Deputado Federal, líder da bancada do PT na Câmara em 2018
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