Por Demétrio Magnoli
A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos no 10 de dezembro. Há uma década, no seu livro The Spirit of Democracy
(Times Books, 2008), Larry Diamond, da Universidade Stanford, alertou
para a “recessão democrática”, ou seja, para o recuo da democracia em
escala mundial. Meses atrás, o tema retornou, no aclamado Como morrem as democracias
(Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos de Harvard. O
recuo das democracias forma a mais aguda ameaça global aos direitos
humanos.
A curva declinante insinuou-se nos primeiros anos do século XXI e já pode ser captada estatisticamente.
Em janeiro, a revista The Economist
publicou um gráfico perturbador que a registra em números. De 167
países classificados num espectro que se estende das democracias plenas
até regimes autoritários, passando por democracias precárias e regimes
híbridos, 89 experimentaram retrocessos. Só 5% da população mundial
vivem sob democracias plenas, enquanto um terço habita em países
autoritários. A maioria situa-se em pontos intermediários. Mais
importante: a deriva rumo ao polo ditatorial decorre menos de golpes de
força que da degeneração interna de sistemas políticos mais ou menos
democráticos.
Samuel E. Finer, na sua monumental The History of Government
(Oxford University Press, 1997), sintetizou os quatro tipos básicos de
entidades políticas (Palácio, Fórum, Igreja e Aristocracia) e
estabeleceu as suas potenciais interações. O Fórum é o sistema fundado
na autoridade conferida pelos de baixo, que deve ser incessantemente
renovada. Mas ele vive sob o risco permanente de se converter em Palácio
– ou seja, no sistema que concentra a autoridade num soberano
individual (imperador, rei, príncipe ou ditador).
A transição acontece quando o
governante alçado pelo povo consegue se desvencilhar do controle efetivo
dos governados, perenizando-se no poder. É esse o mecanismo principal
que, atualmente, provoca o declínio global da democracia.
Populismo, o inimigo que vem de dentro
Giovanni Sartori, da Universidade Columbia, não se deixou impressionar pelo hino do “fim da História” – ou seja, do triunfo definitivo da democracia liberal – entoado na sequência da queda do Muro de Berlim (1989). Diante dos seus acordes, argumentava que, após o desaparecimento do inimigo que vem de fora, o totalitarismo comunista, as democracias enfrentariam um inimigo que vem de dentro e opera sinuosamente, sem contestar o princípio da vontade majoritária como fonte de legitimidade do poder. O nome do inimigo que vem de dentro é populismo, conceito mínimo que não descreve uma ideologia, mas um estilo político.
Populismo, o inimigo que vem de dentro
Giovanni Sartori, da Universidade Columbia, não se deixou impressionar pelo hino do “fim da História” – ou seja, do triunfo definitivo da democracia liberal – entoado na sequência da queda do Muro de Berlim (1989). Diante dos seus acordes, argumentava que, após o desaparecimento do inimigo que vem de fora, o totalitarismo comunista, as democracias enfrentariam um inimigo que vem de dentro e opera sinuosamente, sem contestar o princípio da vontade majoritária como fonte de legitimidade do poder. O nome do inimigo que vem de dentro é populismo, conceito mínimo que não descreve uma ideologia, mas um estilo político.
“O populismo venera o povo”, na síntese
aguda do diplomata romeno e professor emérito da Universidade de
Manchester, Ghita Ionescu. Pela direita ou pela esquerda, os governantes
populistas nascem de eleições livres, mas apelam à democracia para
desmontá-la por dentro, vandalizando as mediações institucionais que
asseguram o controle do poder pelos cidadãos.
O jornal britânico The Guardian
analisou os resultados das eleições parlamentares em 31 países europeus
ao longo de duas décadas, entre 1998 e 2018. Descobriu que a votação
combinada de partidos populistas situados em diferentes pontos do
firmamento ideológico saltou de cerca de 7,5% do eleitorado para perto
de 27%. A onda populista acelerou-se com mais força a partir de 2014.
Mais de metade do eleitorado populista inclina-se para os partidos da
extrema direita.
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Fonte: The Guardian, 20 de novembro de 2018 |
As democracias precisam responder às
necessidades dos cidadãos, se querem sobreviver, enfatizou Diamond. Num
raciocínio paralelo, William Galston, da Brookings Institution, explicou
que o argumento democrático de apelo popular é pragmático, não
ideológico: “para alguns” a democracia liberal “pode ser intrinsecamente
boa” mas, “para muitos, é apenas um meio para uma vida próspera,
pacífica e segura”. Desde a Segunda Guerra Mundial, por mais de meio
século, os governos democráticos do Ocidente mantiveram-se fortes pois
cumpriram o contrato implícito de atender a tais demandas. O recuo em
curso, nos EUA e na Europa, decorre da quebra desse contrato social.
A tendência à chamada “estagnação
secular” (ou seja, à diminuição das taxas de crescimento da economia),
cujas raízes encontram-se no envelhecimento demográfico, junto com a
redução do emprego industrial, fenômeno derivado da modernização
tecnológica e do deslocamento de indústrias para a Ásia, puseram um
ponto final no longo ciclo de progresso do pós-guerra. Os impactos
deslocam as placas tectônicas que sustentam as democracias.
O populismo apresenta-se como uma
“revolta contra as elites” e assume formas diversas, mas as correntes
populistas apertam teclas compartilhadas. Nos EUA, Donald Trump ergue-se
contra a ordem multilateral que serviu como fundamento à Pax Americana
do pós-guerra. Na Europa, os populistas de direita e esquerda investem
contra a União Europeia, que é exibida como uma fortaleza da “elite
globalista”.
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Fonte: pertinentproblems |
O populismo de direita distingue-se por erguer a bandeira do nacionalismo.
Trump exercita a xenofobia contra imigrantes e refugiados latinos ou muçulmanos. Na Europa, a crise dos refugiados impulsionou a votação dos partidos da direita nacionalista. A associação espúria entre imigração e terrorismo funciona como chave discursiva do nativismo.
As instituições democráticas sofrem o
assédio dos populistas. Trump manobra para erradicar as investigações
judiciais sobre seus atos, enquanto se refere aos jornalistas como “inimigos do povo”. Na Polônia, sob o líder de facto Jaroslaw
Kaczynski, e na Hungria, sob Viktor Orban, os governos tentam submeter
os tribunais à vontade dos Executivos. Na Turquia, Recep Erdogan colocou
os tribunais a seu serviço e, às custas de perseguições judiciais,
destruiu a liberdade de imprensa. Os juízes e os jornais são os alvos
diretos da insurreição populista.
No esquema do populismo, o voto é
cultuado como expressão singular, única e auto-suficiente da vontade
popular. O caso clássico é a Venezuela chavista. Hugo Chávez
consolidou-se no poder por meio de sucessivas eleições e plebiscitos. No
percurso, ao longo dos anos de elevada popularidade, sujeitou juízes e
órgãos eleitorais às conveniências do regime “bolivariano”, enquanto
restringia a liberdade de imprensa. Nicolás Maduro completou a
trajetória, instalando a ditadura em meio ao colapso econômico e social.
Contudo, mesmo na etapa final, marcada pela virtual abolição da
Assembleia Nacional de maioria oposicionista, apelou ao “povo”,
produzindo o simulacro de uma Assembleia Constituinte eleita
exclusivamente por seus seguidores.
“Saberá a democracia resistir à
democracia?”, indagou Sartori num de seus últimos livros. A questão não é
retórica – nem alheia ao Brasil que acaba de eleger Jair Bolsonaro. A
ascensão populista degrada os direitos civis e políticos, as liberdades
públicas e as garantias individuais. A grande recessão democrática
assinala um retrocesso geral do respeito à Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
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