Idealizada por Montesquieu, em “O
espírito das leis”, a tripartição dos poderes possui como finalidade
manter o equilíbrio institucional entre as estruturas do Estado,
garantir a harmonia e independência, para que não ocorra a sobreposição
de poderes, evitando assim, injustiças e atos de autoritarismo.
O período entre os séculos XVI e XVIII
ficou registrado na história, sobretudo na Europa, como um período de
regimes absolutistas, em que o rei, déspota, impunha suas vontades e
valores.
Neste período, o ser humano era tido
pelo Estado como servo, pois, frente ao mesmo, ele só possuía deveres,
sem qualquer direito.
É deste período a seguinte passagem de “O moleiro de Sans-Souci, de François Andrieux”:
Em 1745, o rei Frederico II da
Prússia, ao olhar pelas janelas de seu recém-construído palácio de
verão, não podia contemplar integralmente a bela paisagem que o cercava.
Um moinho velho, de propriedade de seu vizinho, atrapalhava sua visão.
Orientado por seus ministros, o rei ordenou: destruam o moinho! O
simples moleiro (dono de moinho) de Sans-soussi não aceitou a ordem do
soberano. O rei, com toda a sua autoridade, dirigiu-se ao moleiro: “Você
sabe quem eu sou? Eu sou o rei e ordenei a destruição do moinho!”
O moleiro respondeu não pretender
demolir o seu moinho, com o que o rei soberano redarguiu: “Você não está
entendendo: eu sou o rei e poderia, com minha autoridade, confiscar sua
fazenda, sem indenização!” Com muita tranquilidade, o moleiro
respondeu: “Vossa Alteza é que não entendeu: – Ainda há juízes em
Berlim!!!”
A expressão “Há juízes em Berlim” ficou
historicamente conhecida como a manifestação de alguém que acredita na
justiça, na imparcialidade do Poder Judiciário, na instituição como
instrumento de contenção de práticas autoritárias.
Com o advento dos estados modernos,
aquele que era servo passou a ser reconhecido como cidadão, ou seja,
agora, além de possuir deveres perante o Estado, passou também a possuir
direitos diante dele.
O Estado Democrático de Direito garante
direitos fundamentais a todas as pessoas, independente de credo, etnia,
classe social, opinião política, etc. Para possuir direitos
fundamentais perante o Estado, basta portar a condição de ser: humano.
O período de estados de regimes
absolutistas felizmente foi superado. Entretanto, o que se vê, cada vez
mais, é a prática de medidas de exceção no interior do Estado
Democrático de Direito, reveladas diariamente nas periferias de grandes
centros urbanos, na repressão as manifestações legítimas, entre outros
casos.
Alegando-se necessidades do contexto e
considerando o que clama a maioria da sociedade, afastam-se direitos
constitucionais explícitos para aplicar a medida que melhor se adequa
aos interesses momentâneos de determinados estamentos.
Assistimos ao impeachment da
presidente Dilma Rousseff, sem ouvir a voz da razão do STF, a qual
deveria se ater aos pressupostos jurídicos, que em verdade, nunca
existiram no processo. A condenação estava definida, bastava construir
um caminho para o processo que aparentasse legitimá-la.
É notório que o Brasil vive uma crise
política, que alguns acreditavam estar superada após o processo de
afastamento da presidente Dilma Rousseff, o que não ocorreu. Assim, a
partir do momento em que esta crise, posta na sociedade e com reflexos
no Poder Executivo e Legislativo, passa a contaminar as instituições,
perdemos precedentes, segurança jurídica e garantias fundamentais
duramente constituídas.
Desde a retirada de uma presidente
democraticamente eleita, temos visto que medidas surgem para atender
finalidades escusas. Após este episódio de omissão da suprema corte, a
crise se tornou mais que política, revela-se, institucional.
A cena sempre reprisada das conduções
coercitivas, as prisões preventivas, muitas das quais injustificadas,
vazamentos seletivos e em momentos cruciais para o rumo da história, e
agora, a ordem de afastamento expedida pelo ministro do STF, Marco
Aurélio Mello, ao presidente do Senado Federal, Renan Calheiros (PMDB –
AL), por medida liminar, e o não acatamento da decisão pelo respectivo
parlamentar, demonstram que vivemos um período de incertezas e
inseguranças.
O desrespeito entre os poderes, para
além de atingir aqueles que hoje conduzem as instituições, agride,
sobretudo, as pessoas que mais precisam do amparo institucional. Isto se
reflete no dia a dia, com práticas autoritárias nas ruas e com o
agravamento da crise econômica, que atinge os setores mais carentes da
população.
O Supremo Tribunal Federal foi
idealizado para ser uma instância contra majoritária, guardião da
Constituição e bastão dos direitos das minorias, ou seja, em momentos de
intensas divergências, muitas vezes beirando a irracionalidade, deve
ser aquele que manifesta a razão, com sobriedade e distanciamento
político.
A omissão do STF em momentos cruciais e
a sua impaciente necessidade de protagonismo em outros, nos coloca
diante de um grave momento histórico. Aquele que deveria ser o símbolo
da garantia institucional transmite sintomas de ter se infectado.
O risco disso é adentrarmos em um
período sombrio, em que não se respeitará mais a Constituição e o
ordenamento jurídico, prevalecendo a lei do mais forte.
Nesse momento complexo nos parece pertinente a pergunta: há juízes em Berlim, e em Brasília?
*Vitor Marques é secretário Municipal de Juventude do PT de São Paulo, recém-formado em Direito pela PUC-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário