Por Moisés Mendes
Foto: divulgação |
Em 1944, quando os nazistas deixaram a França, depois de mais de
quatro anos de ocupação, perguntaram ao cineasta Jean Renoir como ele
definiria aquele período. Renoir, que havia fugido do nazismo para os
Estados Unidos, disse que muitos poderiam ver os franceses mais
acovardados, mais amedrontados ou mais brutalizados. Mas ele, olhando de
longe, achava que os franceses estavam mesmo mais imbecis pela ação ou
omissão de intelectuais, jornalistas e artistas.
Daqui a alguns anos, poderemos fazer a mesma pergunta, não aos
outros, mas a nós mesmos, sobre o período que chegou ao auge em 2016 no
Brasil e que ninguém sabe quanto tempo poderá durar. Por antecipação, dá
para dizer que nos prepararam nos últimos anos para que sejamos todos
imbecis. E que a imprensa tem papel decisivo nessa empreitada.
Na França, as perguntas incômodas com o fim da ocupação eram estas: o
que se faz agora para entender o colaboracionismo? Como olhar para os
que atenderam aos apelos dos nazistas para que colaborassem com a
imposição de seu domínio? Os franceses chegaram a planejar julgamentos,
mas desistiram. Não haveria, em muitas circunstâncias, como separar
omissão, silêncio, distanciamento ou apoio declarado aos que ocuparam o
país, perseguiram e mataram.
Quem colaborou ou se calou – e muitos da imprensa, da universidade e
das artes fizeram isso – teve o argumento de que não havia, como admitiu
Sartre, como fazer parte da resistência declarada sem ao mesmo tempo
condenar-se à morte. No Brasil pós-golpe de 64, sem querer comparar
contextos e circunstâncias, um argumento semelhante foi usado pelos que
se aliaram à ditadura.
Havia na França ocupada pelo nazismo e no Brasil tomado pelos
militares nos anos 1960 a imposição da força e do terror fardado. Os que
se aliaram ou colaboraram têm esse pretexto, inclusive a imprensa.
Poucos dos que sobreviveram, lá e aqui, perfilados com os regimes no
poder, admitiram depois que emporcalharam a própria reputação e as
reputações e a vida de parentes e amigos. Adesistas não cedem com
facilidade à tentação de serem sinceros e honestos consigo mesmos e com
os que os rodeiam.
Mas o Brasil das exceções de 2016, do golpe e da ascensão de um
governo ilegítimo não está sob ameaça de nenhuma força militar. O ano de
2016 pode ter nos deixado mais imbecis por uma sequência de desatinos
levados adiante com naturalidade.
Não há nazistas e militares a fazer ameaças. Políticos, empresários,
procuradores, juízes, jornalistas e outros que ainda contribuem para a
imbecilização do país não sofreram nenhum constrangimento da força para
aderir ao projeto de produzir idiotas. A linha de montagem da
imbecilidade é civil.
Mas quem irá se arrepender da contribuição ao projeto para que o país
seja idiotizado? Quem bateu panelas sabe hoje o que de fato pretendia?
Ou seguiu um pato pela Avenida Paulista? Ou apoiou Janaína Paschoal, ou
aplaudiu Lobão, ou considerou a hipótese de que a democracia poderia
(como ainda pode) ser trocada por uma eleição indireta?
Qual é a dimensão do drama pessoal do ex-presidente do Supremo,
Ricardo Lewandowski, que presidiu as sessões do Senado em que foi
decidida a cassação do mandato de Dilma Rousseff? Que força jurídica
inquestionável e superior determinou que o chefe da mais alta Corte do
país se submetesse aos ritos e às vontades de um Congresso corrupto e
golpista? Por que Lewandowski não se indispôs com a liturgia da farsa e
não se declarou impedido de levar adiante o processo do golpe?
Por que o país foi conivente até agora com as agressões do deputado
Bolsonaro às mulheres? Quem um dia irá se arrepender (em especial os
liberais brasileiros) de ter sido silencioso diante dos excessos da
Lava-Jato? Com a transformação da prisão preventiva em masmorra
desmoralizadora de candidatos a delator? Com o recorde de processos
(cinco), decididos em tempos recordes, contra o ex-presidente Lula? Com a
vergonhosa impunidade dos corruptos tucanos.
O Brasil ficou mais imbecil em 2016 porque muitos colaboraram com os
que articularam as ações de desqualificação da política, de esvaziamento
das eleições e de destruição das conquistas da Constituição de 1988. E
não há nada, como havia no nazismo e havia na ditadura, não há nenhuma
força excepcional que justifique omissões, acovardamentos e colaborações
com o golpe e com a sequência de fatos que o consolidam.
O jornalismo estará um dia diante do que lhe cabe no balanço final do
processo de imbecilização do país. Na cumplicidade com a manutenção de
Eduardo Cunha até a execução do golpe. Nos aplausos ao homem do Jaburu
usurpador do cargo de presidente. Na concordância com os desvios de
conduta do juiz Sergio Moro. Na participação no processo de seleção de
vazamentos que ajudaram a idiotizar desinformados e a empoderar
golpistas.
O jornalismo imbecilizador não estava, como estiveram os que
enfrentaram o nazismo e a ditadura, sob nenhuma pressão insuportável.
Desta vez, a imprensa brasileira contribuiu por conta e risco para a
transformação de 2016 no ano da idiotia. A imprensa foi uma das
idealizadoras e executoras do projeto de destruição das esquerdas e da
democracia e de preservação de todos os envolvidos no golpismo.
Não precisamos esperar que um dia alguém nos diga que em 2016 o
jornalismo dito ‘independente’ foi protagonista do plano de imbecilizar o
Brasil. E o projeto em curso ainda está longe do que foi idealizado com
a ajuda de jornalistas que deveriam denunciá-lo e destruí-lo.
Fonte: Publicado no Extra Classe
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