Aos 42, Sandra aprendeu a ler e a escrever com o filho Damião, de 11. (Agil Fotografia/BBC Brasil) |
"Mãe, mãe, quer ler comigo? É uma
historinha. E tem figuras". "Desmaiada" em uma rede após horas
garimpando lixo na rua, para vender, foi assim - aos sussurros de Damião
Sandriano de Andrade Regio, de 11 anos, o mais novo dos sete filhos -
que Sandra Maria de Andrade, de 42 anos, começou a decifrar as letras do
alfabeto e a despertar para o mundo da leitura.
Até um ano atrás,
não sabia ler nem escrever. Em uma casa encravada numa rua de areia em
Jardim Progresso, periferia de Natal, no Rio Grande do Norte, ela era o
retrato dos 758 milhões de adultos no mundo apontados em um estudo da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), na semana passada, como incapazes de ler ou escrever uma
simples frase.
No Brasil, são 12,9 milhões de pessoas ou 8,3% da população com mais de 15 anos.
Sandra não sabia fazer nem o próprio nome. "Espiava" quem visse lendo um livro e pensava "ah, se eu soubesse também. Se tivesse uma coisa que eu pudesse roubar, queria que fosse um pouquinho daquela leitura", disse à BBC Brasil. Ela tentou estudar, mas não pode.
Foi forçada a trabalhar desde cedo. Abandonada pela mãe aos três
anos, diz que a avó, com quem passou a morar, lhe entregou a um casal
que a impediu de ir à escola. Ela teve de trabalhar na lavoura, em casas
de farinha (locais em que mandioca é ralada ou triturada) e fazendo
faxina.
Um dia, quando ajudava no cultivo de bananeiras, viu
crianças passando na porta com cadernos debaixo do braço. "Queria ir
para onde iam, mas diziam: vá trabalhar. E eu chorava". Aos 12 anos, na
tentativa de reencontrar a mãe, fugiu. Foi rejeitada. Nunca entendeu o
motivo. "Ela não me aceitou. E o homem dela quis me fazer mal nesse
tempo. Eu não sabia o que era aquilo", relembra.
Sem família por
perto, Sandra passou a viver "na casa de um e de outro" vizinho. "Toda
vez que ela (a mãe) trocava de marido eu procurava ela, que era pra ver
se me amparava. Mas ela sempre me rejeitou". A menina achava que "a mãe
tinha que agarrar os filhos com unhas e dentes". Passou então a "sentir
um vazio". Foi viver nas ruas e comer o que achava no lixo."
Um
homem lhe ofereceu casa e comida quando tinha 13 anos. Viveram como
marido e mulher, tiveram três filhos e uma história que, para Sandra,
significou "levar tanta porrada", a ponto de achar que estava morta. Em
12 de junho de 1996, na frente dos filhos, foi golpeada várias vezes com
uma faca, teve parte dos cabelos arrancados com os dentes e, já se
sentindo dormente depois de tanta dor, chegou a dizer a uma das
crianças: "Com fé em Deus, se sua mãe escapar macho nenhum bate mais
nela". No dia seguinte, fugiu levando os três filhos.
"Me
perguntavam na rua se eu tinha sido atropelada e mandavam eu dar parte
dele. Mas eu não tinha instrução, não tinha ninguém pra me apoiar. Meu
negócio era sair dali". A ideia de Sandra era "enfrentar o mundo".
A vida sem ler
Mas
o mundo, quando tinha letras estampadas, "era como uma folha em branco"
que dificultava até a hora de pegar um ônibus. Em busca de ajuda, ela
precisava confidenciar a quem cruzasse o seu caminho: "Eu não sei ler". E
pedia: "Você pode ler pra mim?".
'Eu tomava banho, deitava na rede, ele vinha e me chamava pra ler. Eu queria ver os desenhos, mas também queria aprender as letras', conta Sandra. (Agil Fotografia/BBC Brasil) |
Mas, sofrimento maior foi, anos depois, fazer a carteira de
identidade e ter de estampar no documento a impressão digital em vez da
assinatura. Fruto de um segundo casamento e com aproximadamente três
anos de idade, Damião, ouvindo a mãe mensurar o tamanho da vergonha,
"muito grande", fez um pacto com ela naquele dia: "Eu vou aprender e,
quando aprender, vou ensinar à senhora".
A mãe já catava lixo
para vender à reciclagem e a outros compradores que batem à porta. A
essa altura, não sabia o que era carteira assinada, estava separada do
segundo marido e carregava a tristeza de ter enterrado quatro dos sete
filhos - todos ainda na infância, vítimas de doenças que acha difícil
explicar, e uma das filhas após um atropelamento.
Ver Damião ir e
voltar da escola era um dos momentos de alegria. Cada dia que o filho
chegava, contava a ela, "já morta de cansaço", tudo o que havia lido e
aprendido. Ela se orgulhava: "Ele vai ser o que eu queria ser".
Damião
também tinha o estímulo da professora. Ela dava aulas de reforço e o
incentivava a pegar livros na escola. "Foi com esses livrinhos que tudo
foi se desenganchando" para Sandra. "Eu tomava banho, deitava na rede,
ele vinha e me chamava pra ler. Eu queria ver os desenhos, mas também
queria aprender as letras. Ficava curiosa."
O mais próximo que ela
havia chegado da escola foi em uma turma de jovens e adultos em que
aprendeu o "ABC", mas que acabou abandonando por não parar de ter
dúvidas e travar sempre que chegava no "e", letra que traduz como "uma
agonia de vida". Ela ficava "apavorada" por não saber. "Sentia revolta".
Damião
desvendou o "e" para a mãe explicando que era o mesmo que um "i", só
que fechado e sem o ponto. O "h" virou uma cadeirinha" e o R o mesmo que
um B, só que "aberto". Ele começou a ensinar as letras do nome dele e
as letras do nome dela. Até Sandra aprender a escrever.
"Quando
eu aprendi, disse: vou fazer outra identidade que é pra quando chegar
nos cantos eu dizer: eu sei fazer meu nome. Pra mim, já era tudo eu
saber. Chegar lá, o povo dizer assine aqui e eu dizer: agora eu já sei,
não sinto mais vergonha".
'Eu quero ver ela aprendendo comigo. Quero que aprenda as palavras que ela sente aqui dentro', disse Damião. (Agil Fotografia/BBC Brasil) |
Escrever o próprio nome foi uma conquista. A palavra "mãe" também. Em
uma reunião da escola, "morreu de felicidade" ao assinar a primeira vez
como responsável da criança. "Tinha que escrever o que eu era dele. Eu
escrevi mãe, caprichado, bem grande."
Damião,
devotado à mãe, quer ir além. "Eu quero ver ela aprendendo comigo.
Quero que aprenda as palavras que ela sente aqui dentro. Ela gosta de
falar amor, paixão. Já sabe um monte de palavras. Ela sabe as mais
simples".
Leitura
Mãe e
filho leram, juntos, 107 livros em 2016, se considerados apenas os
contabilizados na escola. A lista, porém, fica maior se incluir outros
títulos que Sandra encontrou no lixo. O preferido dela, faz questão de
dizer, "é Ninguém nasce genial". "Escrevi meu nome nele. Porque
ninguém nasce gênio. Porque eu achava que não precisava mais saber,
achava que era tarde pra saber."
Para Damião, outro livro foi
mais impactante. Tratava da história de um anjo que vivia acorrentado e
só conseguiu se libertar quando ensinou um ser humano a rezar e os dois
viraram amigos.
"É tipo eu e minha mãe. Eu estou ensinando uma
coisa a ela e ela me ensina outra. Eu era novinho, ela me cuidava, eu
cuidava dela. Ela dava um abraço em mim eu dava dois. Foi assim que nós
começamos a nos amar."
Mãe e filho leram, juntos, 107 livros em 2016, se considerados apenas os contabilizados na escola. (Agil Fotografia/BBC Brasil) |
O menino também leu sobre aventuras, amizade, paixão e amor ao próximo.
Nesses momentos, diz que "vai pra outro mundo". Que fica com "uma imaginação infinita".
"Eu quero que a leitura me leve pra qualquer canto", diz. Neste ano, irá para o 6º ano na escola.
Na
casa onde divide cada palavra que aprende com a mãe, a ajudou a
escrever, na parede da frente, uma mensagem em letras verdes,
maiúsculas: "CANTINHO DA FELICIDADE ONDE HÁ DEUS NADA FALTARÁ".
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