*Por Aldo Fornazieri
Atendendo pedido de alguns leitores, procurarei aqui esclarecer
melhor o sentido de artigo anterior - "A perseguição a Lula e a
destruição do sentido ético" (GGN 16/01/17). A questão principal posta
consiste em entender as razões mais profundas da sanha persecutória e
declarada de destruir não só a figura política, mas a figura simbólica
de Lula. É verdade que o golpe tem uma estratégia de dois momentos,
sendo que o primeiro consistiu no afastamento de Dilma e, o segundo, na
tentativa de inviabilizar a candidatura Lula em 2018. As elites
brasileiras querem o controle absoluto do Estado e do orçamento para
atender os seus interesses.
Mas a destruição da figura política e simbólica de Lula vai para além
desse objetivo. Em primeiro lugar, essa fúria destruidora se relaciona
com um elemento da história. Em que pese existir, hoje, um conceito
pluralista de história, a história dos povos, em sua tradição, se
referia aos grandes acontecimentos, de caráter coletivo, capazes de
conferir um caminho e um sentido de futuro àquela comunidade específica.
Esses acontecimentos podem se configurar tanto em epopéias quanto em
tragédias. Os grandes acontecimentos históricos se tornam subjetividade e
adquirem uma dimensão abstrata e espiritual e se tornam um poder
simbólico, além de uma lição a ser sempre indagada, apreendida e
refeita. São uma fonte inesgotável de poder pelo fato de que os seres
humanos do presente e do futuro sempre podem recorrer a eles para
mobilizar energias criadoras produzindo algo novo e imprevisto.
Os grandes acontecimentos históricos que adquirem uma dimensão
simbólica geralmente expressam uma condensação extraordinária de vontade
coletiva. Essa vontade coletiva tem dois organismos principais de sua
fomentação e de sua organização: a figura do herói - do mito-Príncipe na
linguagem de Maquiavel e de Gramsci - ou um organismo, como um partido
ou um movimento.
No sentido geral do termo, entende-se por herói um ser humano que
exerce uma influência extraordinária sobre os acontecimentos históricos
pela sua prudência, pela sua coragem e pela sua bravura, conferindo às
suas ações (ou às suas palavras) uma dimensão desmedida em relação às
ações significativas de outros atores. No mundo antigo, o herói
aproximava-se dos deuses merecendo uma veneração e uma imortalidade na
memória vindoura e na perdurabilidade dos tempos. Ao adquirir esta
configuração simbólica, o herói torna-se recurso, vida, energia,
exemplo, força mobilizadora.
Mesmo que o herói moderno seja mais humanizado, o fato é que os
heróis se tornam cultura viva, memória ativa e se perfilam em nossos
espíritos como arcos do triunfo, campos de batalhas, dolorosos desfechos
trágicos, marchas triunfais, resistências, revoluções. Tanto os heróis
quanto os grandes acontecimentos do passado mobilizam as nossas emoções e
são as nossas emoções mobilizadas, mais do que o computador, a frieza
do cálculo ou outra virtualidade qualquer, que têm a potência da
transformação, a força inovativa criadora do novo.
A destruição de Lula
Todos sabemos que o Brasil tem escassos recursos simbólicos, em
termos de história e de líderes significativos, que possam ser uma fonte
de vida para mobilizar energias criativas e transformadoras. Nem a
declaração da Independência e nem a proclamação da República, momentos
fundantes da nação, se apresentaram como atos trágicos ou épicos de
significação transcendente e nem produziram heróis inspiradores do
futuro. As elites brasileiras, movidas pelo seu egoísmo predatório,
nunca tiveram um senso de res publica, nunca elaboram um
projeto de grandeza nacional e nunca almejaram a conquista da glória. A
única coisa que almejaram foi escravizar, explorar e maltratar os
trabalhadores e o povo. A sua prática política constitutiva consiste em
assaltar os cofres públicos, apoderando-se do orçamento, geralmente
constituído pelo sacrifício fiscal dos mais pobres.
Não podemos deixar, contudo, de creditar a Getúlio Vargas e a Lula
conteúdos e dimensões que os aproximam do conceito de herói e lhes
emprestam funções simbólicas de reserva de poder mítico. Por qual razão
Vargas e Lula encarnam este conteúdo e este conceito? Porque foram
construtores, organizadores e depositários de uma vontade coletiva
nacional, encarnaram uma "fantasia concreta", a esperança de um futuro
melhor, a ideia de uma remissão da miserável condição de um povo sofrido
e abandonado. Por desempenharem essas funções, de alguma forma ou de
outra, Vargas e Lula se tornaram preconceitos do povo, paradigmas de
líderes políticos.
É conhecido o esforço que as elites predatórias e seus servidores
intelectuais empreenderam para destruir a figura política e simbólica de
Vargas. Agora, esse mesmo esforço, com a mobilização de meios
inauditos, se volta para destruir a figura política e simbólica de Lula.
A tentativa de destruir Vargas, parcialmente bem sucedida, e agora a
violência destrutiva que se projeta contra Lula, tem esse objetivo
maior: negar ao povo, no presente e no futuro, o recurso a uma fonte
viva de poder, o recurso a uma energia mobilizadora, ativa,
transformadora e criadora de inovação. As elites predatórias e
saqueadoras da república não querem que o povo tenha, a qualquer tempo,
esse recurso extraordinário de poder capaz de mobilizar energia para
mudar o sentido da história do Brasil. Querem que o povo se mantenha na
sua própria solidão, abandonado, enregelado e impotente.
Para privar o povo e os movimentos sociais do recurso do poder
simbólico é preciso destruir Lula, imputando-lhe todo tipo de
acusações, apresentando-o como o oposto das virtudes republicanas, que é
a acusação de corrupto. Para isto não se envergonham em escandalizar
pedalinhos e barquinhos de crianças. O que era crime ontem para atingir
Lula, hoje é licitude validada por juízes do STF para salvar a
hipocrisia decrépita dos líderes das elites. Nestes momentos, as elites
não têm nenhuma consideração com a Constituição, com as leis, com as
aparências, com a democracia. Destruir o sentido de nação, de vontade
coletiva, e todos os instrumentos e políticas públicas que poderiam
imprimir uma orientação de futuro é o custo monstruoso a ser pago para
que a predação possa continuar.
É preciso entender aqui que não se trata de endeusar ou mitificar nem
Vargas e nem Lula. Trata-se de compreender o que eles representam
simbolicamente para a constituição de uma consciência cívica e para um
sentido ético da comunidade política. Trata-se de compreender que, com
seus acertos erros, com suas ambiguidades, eles significam o poder
simbólico do povo brasileiro, que tem escassos recursos históricos para
se mobilizar e se unir em torno de um propósito libertador, de justiça e
igualdade.
Trata-se de compreender que é o povo e os seus movimentos sociais que
as elites querem atacar para mantê-los subjugados. Querem um povo
servidor dos seus interesses e de sua riqueza, vergonhosa e
indecentemente amealhada com a apropriação dos recursos públicos que
deveriam amenizar as vicissitudes dos mais pobres. Trata-se de
compreender que somente o tumulto das ruas e a veemência das batalhas
serão capazes de bloquear esta deprimente história do Brasil e
patrocinar um destino mais dignificante, civilizado e grandioso para o
povo.
*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política.
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