Por anos o verdadeiro partido de oposição no Brasil era a mídia,
organizada em oligopólio, que reina sobre o Brasil. O que não se
esperava é que o judiciário e o ministério público constituíssem um novo
partido de oposição aos pobres e à democracia.
O papel das organizações globo, da folha de São Paulo, da editora
abril e seus grupos associados na história do Brasil já é proverbial.
Apoiaram os regimes autoritários, fizeram oposição às mudanças da
redemocratização, se opuseram fortemente aos governos progressistas e
sempre estiveram ao lado da plutocracia a qual pertencem seus donos.
Nada de novo no front para quem sabe que a luta de classes é uma
realidade no mundo, ainda mais em um país capitalista periférico com uma
herança escravocrata e oligárquica como o nosso.
A novidade é a falta de republicanismo que acomete às instituições
brasileiras. Existem nichos no nosso judiciário e no ministério público
recheados de fascistas, neoliberais, machistas, racistas, e toda sorte
de chaga social que a elite brasileira tem. Uma parte deste problema se
deve ao fato de que nosso judiciário é claramente composto por homens,
brancos, heterossexuais, urbanos oriundos da mesma classe média alta ou
alta e que, se já não são conservadores por educação e criação,
tornam-se pela própria contingência institucional dos poderes que
exercem.
Uma parte da direita (e mesmo de uma certa ‘new left’ brasileira)
defende que o que ocorre com Lula é idêntico ao que sempre ocorreu com
populações negras, jovens e periféricas que são, sistematicamente,
marginalizadas e esquecidas nos porões das cadeias e nos escaninhos de
juízes. O argumento é ajudado pelo fato de que das mais de 750 mil
pessoas presas no Brasil, mais de 56% é negra e tem até 29 anos. A
justiça, no Brasil, é uma evidente ferramenta de luta de classes,
enclausurando jovens negros por portarem algumas gramas de maconha,
enquanto mantém soltos brancos com quilos de cocaína e armas.
Contudo, o argumento de que o que ocorre com Lula não seria novidade
não pode ser aceito. Por mais ignóbil e absurdo que seja o
encarceramento dos jovens, o que ocorre ali é a ação pontual, moral e
determinada de um grupo de autoridades (juiz, MP e etc.) sobre um jovem
que ameaça marginalmente o sistema. A violência de classe somente pode
ser percebida quando se olham os números totais. A ação do judiciário
sobre cada caso, se analisada em separado, revelaria, talvez,
mesquinhez, moralismo, conservadorismo, falta de conhecimento e etc.,
mas cada ação individual não tem força política imediata. Foram
necessários anos e anos de encarceramento em massa no Brasil para que
hoje tivéssemos a certeza do absurdo. Os argumentos que defendem as
prisões baseado em leituras mesquinhas da lei, só adquirem força
política através da coletividade do judiciário brasileiro.
Trocando em miúdos, a vilania de um juiz ou de um membro do MP contra
um jovem negro pode ser sustentada como “cumprimento neutro da letra da
lei”. A ação deliberada de TODO o judiciário brasileiro no
encarceramento de negros desvela a luta de classes e a ação política de
forma inaceitável.
A diferença para o caso Lula está exatamente aí. Para a ação política
concertada, o judiciário levou anos de má formação, má escolha de seus
membros e cultivo de uma ideologia institucional sórdida que afirma seus
partícipes como justos detentores de privilégios e benefícios que
literalmente os colocam distante da sociedade em que atuam. No caso
Lula, ao que parece, a partir da posição do desembargador Favretto e
outros, o que houve é uma ação de poucos e para poucos.
É verdade que a imensa maioria dos juízes brasileiros não vivem no
Brasil. Vivem em pedaços de terra geograficamente defendidos,
sustentados, branqueados e aparelhados com dinheiro público, cujo
objetivo é exatamente fazer com que eles não estejam inseridos na
realidade daqueles que vão julgar. Não estejam, portanto, “no Brasil”.
Há uma errônea premissa sociológica de que do distanciamento das agruras
materiais e sociais surgiria uma figura neutra, equidistante que,
baseada na “letra da lei” e nos princípios republicanos, administraria a
Justiça.
Um arremedo pobre e inefetivo da noção católica do que é justo e do
que é bom. Sociologicamente nossa sociedade reserva aos juízes o espaço
mais próximo de Deus entre todos os mortais. Ocorre que estas pessoas
passam a se compreender como divinas. Mesmo as mais humildes, depois de
intenso bombardeio ideológico institucional, se convencem serem
“diferenciados” em sua existência, atos, consciência e capacidade.
A Justiça brasileira é a justiça dos desiguais. Dos “meritórios e
diferenciados” sobre os “vis e perversos”. Repete o arquétipo católico
da luta do “bem” contra o “mal”. O olhar dos abastados material e
tecnicamente sobre a escória dos desafortunados ou desprezíveis.
Este modelo serviu bem, historicamente, para uma sociedade que se
tornou independe no início do século XIX, mas manteve os mesmos grupos
sociais e econômicos no poder. Serviu também para a consolidação de uma
ideia de “República”, no final do XIX, que é totalmente tributária da
noção de diferenciação social. Em nenhum lugar do mundo “república” é
aproximado de “democracia”, mas, no Brasil, a nossa república foi
pensada para estar de costas para o povo.
O pacto de 1988, na constituição feita após o golpe militar, não era
um pacto pelo fim das desigualdades sociais. É certo que grupos ali
trabalharam incessantemente para isto, mas, no fim, os conservadores
conseguiram manter intacta uma estrutura de privilégios ligada
umbilicalmente aos altos cargos nos poderes. Desde a exigência do
tratamento pessoal diferenciado até a auto-concessão de penduricalhos,
tudo faz parte da noção arraigada de que os que exercem os papéis de
juízes e promotores são o que era conhecido na Antiguidade como “primus
inter pares”: os primeiros entre os iguais. E aí se desfaz qualquer
noção real de república. Se alguém é diferente então não somos mais
todos iguais.
A constituição de 1988, contudo, consolidou um pacto velado contra o
arbítrio. Oriunda das cicatrizes ainda sangrando do regime militar,
todas as garantias foram dadas ao exercício do poder jurídico, tido como
“único garantidor” contra a violência do autoritarismo. Pois o
Judiciário tornou-se exatamente a principal fonte da violência. Contra
Lula a violência não só é mais descarada e desavergonhada, como visa uma
economia de poder. Ao invés de encarcerar 500 mil jovens negros (todos e
cada um) e assim mantê-los fora da ideia de sociedade, gastando poder
para cada injustiça e vilipêndio, ataca-se aquele que portava não apenas
a esperança de uma mudança como tinha efetivamente realizado isto.
Tão logo Haddad se consolida como figura herdeira desta
representação, recebe – também – a herança do ódio endereçado ao
ex-presidente. Não demorou uma semana e Haddad já conhece as boas vindas
das elites brancas, togadas e mal-formadas que povoam o nosso
judiciário e Ministério Público.
No Brasil de ponta-cabeça, ser perseguido pelo judiciário é sinônimo
de luta na defesa pelos mais pobres ... Assim como ser preso sem provas e
sem crimes mostra ao povo quem nunca saiu do seu lado. O judiciário
torna a campanha de 2018 fácil de ser entendida pela população mais
humilde. Lula Livre é tudo o que eles querem e talvez tudo o que
precisam.
Fonte: Publicado no Jornal GGN
Nenhum comentário:
Postar um comentário