![]() |
Ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim |
O golpe que destruiu a
democracia brasileira, o direito dos trabalhadores e a soberania
nacional demoliu também, quase que completamente, a tradicional
diplomacia do País. O Brasil, que com os governos Lula e Dilma passou a
ter um protagonismo central nos principais fóruns internacionais, passou
nos últimos dois anos a ser ignorado e submergiu como país secundário.
"São dois anos de retrocessos brutais na integração sul-americana, na
política de aproximação com a África e com os países árabes, ausências
nos organismos internacionais", avalia o ex-chanceler e ex-ministro da
Defesa Celso Amorim, ao fazer o balanço de dois anos da efetivação do
golpe contra a presidenta legítima Dilma Rousseff.
Em entrevista exclusiva ao PT na Câmara,
Amorim diz que "o Brasil não tem mais voz, perdeu relevância, quando
não tem um papel negativo, como é o caso da Venezuela". Celso Amorim
também critica o moralismo de setores do Judiciário e do Ministério
Público, como os integrantes da Operação Lava Jato, que em nome do
combate à corrupção atacam e destroem empresas nacionais, caso inédito
no mundo.
"A criminalização ao apoio às empresas brasileiras é lamentável. A
Volkswagen enfrentou um grave problema na Alemanha, o diretor foi punido
pela Justiça do país, mas a empresa foi preservada. Hoje em dia as
empresas brasileiras de construção viraram sinônimo de palavrão.
Precisamos mudar isso".
Leia abaixo a entrevista:
Qual o balanço que o senhor faz da política externa brasileira nestes dois anos de golpe?
Dois anos de muito retrocesso. O Brasil era um país de muita presença
no mundo, com os governos Lula e Dilma. No governo Dilma, houve a
criação do banco dos BRICS (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia,
China e África do Sul), iniciativa muito importante para a estrutura
financeira do mundo todo. Mas falando mais amplamente, tivemos
retrocessos brutais na integração sul-americana, na atitude em relação à
Venezuela, com uma linha que não é a tradição da diplomacia brasileira,
nem sequer à época do presidente Fernando Henrique.
Rompeu-se o diálogo (com a Venezuela), trazendo consequências,
inclusive para nós (com os refugiados). Retrocessos na política de
aproximação com a África e com os países árabes. O Brasil tinha presença
muito forte como agente da política internacional, como no
reconhecimento do Estado da Palestina, o acordo sobre programa nuclear
iraniano, na Organização Mundial do Comércio, onde atuamos para mudar
regras que seriam negativas para países como o Brasil e beneficiariam as
grandes potências comerciais, sobretudo Estados Unidos e União
Europeia.
O Brasil não tem mais a atuação que tinha em fóruns como o G-7, que
antes era G-8 mais 5, com a participação de Lula em todos os encontros. O
Brasil não tem mais voz, perdeu relevância, quando não tem um papel
negativo, como é o caso da Venezuela. Obviamente houve retrocessos
internos, como o limite dos gastos sociais, que impacta negativamente na
saúde, na educação e nos programas de igualdade racial, afetando
políticas de direitos humanos e sociais.
Era país de grande atuação e projeção na América Latina, África,
países árabes. Tínhamos grande atuação em fóruns internacionais e ainda
contribuiu para criar alguns, estimulando a imagem positiva de país que
buscava melhorar os padrões de justiça social e estimular a política
pacífica do diálogo. Acho que tudo isso desapareceu. Retrocesso enorme.
Hoje, há no mundo uma perplexidade enorme com o que acontece no
Brasil, com contaminação em toda a América Latina. O Brasil é um país
muito importante para o mundo não prestar atenção. No começo, houve uma
certa indiferença (em relação ao golpe), hoje há uma grande preocupação
nos países da América do Sul e na Europa. O Brasil tem importância para o
equilíbrio mundial.
Olhando de dentro para fora, é preciso destacar também os ataques à
nossa soberania. Um exemplo emblemático é o da Embraer, que o atual
governo está entregando por um prato de lentilhas. Uma empresa
estratégica, com capacidade de desenvolver uma indústria aeronáutica
própria no País. Fui ministro da Defesa e sei da importância da empresa
para a área. Enfim, um conjunto de coisas que compõem um quadro-negro de
retrocessos que assistimos.
Quais as causas que levaram ao virtual fim da Unasul?
Vários motivos. Um deles, a atitude em relação à Venezuela. Mas
também surgiram na região outros governos de inclinação neoliberal. Tudo
é um processo, com características próprias em cada país, mas por trás
de tudo há uma ofensiva do capital financeiro internacional também.
Houve mudanças na Argentina, no Equador... e em outros países. No caso
específico do Brasil, tem liderança natural nesses processos. O Brasil
tem fronteira com dez países, mas abandonou iniciativas como o Conselho
de Defesa Sul-Americano... Esses processos são complexos. Integração,
não se pode dizer que está pronta e acabou. Ou cresce sempre e avança ou
regride. No nosso caso, regrediu. A Colômbia, por exemplo, se aproximou
mais dos EUA, entrou para a OTAN, como membro-associado e saiu da
Unasul.
Nos conflitos regionais, o Brasil sempre atuou para ajudar a
solucioná-los. Sempre atuamos na região na mediação. Se essa liderança
não se manifesta, se não se faz presente de maneira positiva, tudo
regride. A Unasul é exatamente isto. O que a gente vê hoje é,
infelizmente, um processo de desintegração da América do Sul. Obviamente
há gente que tem interesse nisso. Quando houve a queda do Muro de
Berlim, comentou-se que os EUA tinham ganho a guerra fria sem nenhum
tiro. No caso da desintegração sul-americana, é algo parecido, eles não
deram um tiro. Não ostensivamente. Nós nos encarregamos de desfazer algo
que era uma coisa positiva, independente, que chamou a atenção do
mundo, até a revista The Economist publicou capa dizendo que a América
Latina não era mais quintal de ninguém...Tudo isso voltou para trás.
O governo Temer está totalmente alinhado com Washington?
O vice-presidente Mike Pence e o secretário de Defesa, Jim Mattis,
vieram aqui e trataram o Brasil de uma forma só comparável à época do
golpe militar de 1964, quando Castelo Branco falava das fronteiras
ideológicas. O Brasil é um país muito grande, pode até não seguir tudo.
Mas certamente muita coisa que está acontecendo mostra que o Brasil se
retraiu, desde a venda da Embraer passando por elementos que têm a ver
com cibernética e chegando aos processos de integração sul-americana e a
nossa atuação no mundo. Não se fala mais da integração da América do
Sul, nunca ninguém ouviu mais falar de BRICS, o Brasil não toma nenhuma
iniciativa. O secretário de Defesa dos EUA até veio dizer para o Brasil
não se aproximar muito da China... E ninguém fala nada, nem para dizer
que o Brasil é independente. Não é assim. E cabeça baixa envergonha a
todos nós. No caso das crianças brasileiras detidas nos EUA, o Brasil,
de forma inacreditável, se omitiu, devia ter convocado o embaixador
norte-americano, chamado a atenção dele. Não pode ser dessa maneira, com
essa subserviência. Depois do golpe, escrevi artigo sobre a guinada à
direita do Itamaraty – subalternidade estratégica. Nem é estratégica, é
simplesmente subalternidade, subserviência.
EUA sempre defendem soberania nacional e interesses nacionais. Aqui, o
pessoal que elogia os EUA em tudo acha que esses conceitos são balela.
O mundo evolui, é inevitavelmente mais globalizado. A soberania
nacional é a defesa do seu interesse nesse processo. No caso dos
tratados internacionais, estamos presos às normas. Não podemos alegar
soberania nacional para descumprir um tratado assinado voluntariamente.
Até há tratado sobre isso, não se pode alegar uma norma interna para
desrespeitar um tratado internacional já ratificado pelo Brasil. E é o
que ocorre agora com o presidente Lula, um caso gravíssimo. Brasil
assinou Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e ratificou o
Protocolo Facultativo que reconhece o Comitê de Direitos Humanos da ONU.
Então, não pode, em nome de uma pretensa soberania, dizer que não vai
seguir. Ficam falando que é um 'comitezinho' da ONU, não é. É órgão de
tratado, pois é o órgão mais forte, pois tem o poder de fazer com que um
tratado seja cumprido. O nome é comitê, mas na verdade é o órgão de
Tratado do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Não é
"cada macaco em seu galho", o galho da ONU é o mundo inteiro. Então,
soberania nacional é usada para justificar o lado ruim, como no governo
militar, que usou a soberania para justificar a tortura, "a tortura é
nossa".
Mas o conceito de soberania nacional é absolutamente fundamental para
o desenvolvimento do País, porque se você não fizer isso, os que vão
ganhar são os que detêm as alavancas do poder econômico mundial. Se não
se utiliza a faculdade que a soberania dá, por exemplo, para explorar o
pré-sal, via Petrobrás, em benefício do povo brasileiro, as
multinacionais do petróleo vêm e exploram de acordo com seus interesses.
Especulam com o preço do petróleo conforme seu interesse. O mundo vive
grandes transformações. Pode haver uma corrida pelos recursos naturais.
Nós temos que ter o controle. Por isso, apoiamos nos governos Lula e
Dilma projetos importantes na área de defesa. Como o submarino de
propulsão nuclear. A compra dos caças com transferência de tecnologia
para a Embraer... e outras iniciativas, como o monitoramento eletrônicos
das fronteiras.
Tudo isso é exercício da soberania, defender os nossos recursos
naturais para os brasileiros. Mas há pessoas ou partidos que só querem
ver o ganho financeiro – nem isso conseguiram muito, pois venderam a
Embraer a preço vil. A noção de soberania tem que ser acompanhada de
visão de Nação. Por isso, que as políticas interna e externa devem ser
combinadas. Sem bolsas, sem Fies e outros programas na área faz-se com
que a sociedade brasileira não se constitua verdadeiramente como Nação. O
conceito de soberania tem duas faces. Em relação ao exterior e para
dentro. Para dentro, a soberania popular, que estão querendo negar,
impedindo Lula de ser candidato. E, para fora, com a entrega dos
recursos, política externa subserviente. Muito triste, lamentável.
Tivemos política externa ativa e altiva e fez com que Brasil fosse
respeitado no mundo.
E agora, quais os desafios pela frente?
O mundo não para de mudar. Poderíamos ter avançado mais na integração
sul-americana já a partir do governo FHC se o Brasil tivesse prestado
mais atenção na região. Aí não teria havido tantos acordos de livre
comercio de países da região com os EUA. Mas isso não impediu a criação
da Unsaul, mas limitou o que poderíamos fazer na área econômica. O
comércio aumentou muito, tem uma base. Agora, essa aproximação da
Colômbia com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) é fato
novo, vai impor outra maneira de ver aqui as coisas. Não queremos base
chinesa, russa e nem americana na América do Sul. Queremos a América do
Sul para os sul-americanos. Essa é a verdadeira doutrina que temos de
seguir.
O mundo não para de mudar. No México, houve evolução positiva, um
governo de esquerda – não sabemos quais os limites –, mas é de esquerda
progressista, a primeira vez na história do México democrático. Você tem
multipolaridade ocorrendo de maneira clara, com o avanço da China,
independência da Rússia, a União Europeia... Mas, de nossa parte, com
América do Sul e com outros países em desenvolvimento, enfraquecida. Os
desafios são novos. Pela primeira vez um presidente norte-americano
ameaça o uso da força contra um país da América do Sul, quando Trump
disse que não excluiria o uso da força no caso da Venezuela. Acho que é
mais para falar do que fazer, mas de toda maneira é negativo.
O mundo evolui e cria oportunidades para agirmos de maneira mais
independente e poder atuar na organização da paz e na solução de
problemas. Tivemos participação importante na reforma do sistema
financeiro, da reforma, ainda que limitada, do sistema de cotas do FMI e
do Banco Mundial. Na OMC (Organização Mundial do Comércio) não deixamos
que regras ruins prosperassem. Enfim, conseguimos vitórias e progressos
importantes.
É preciso estar antenados nas mudanças e saber resistir ao que é
negativo, como fizemos lá atrás, contra a Alca. E aproveitar o que é
positivo. Há fissuras que estão ocorrendo, acho que não existe mais uma
hegemonia clara no mundo. Há até brechas para que países em
desenvolvimento se coordenem, se desenvolvam e até criem alternativa ao
império do dólar- não é terminar com o dólar, mas equilibrar. O Brasil
pode participar disso ativamente, mas precisa ter governo progressista.
É importante retomar a iniciativa do BRICS?
Sim, e também a integração sul-americana, a relação com países
árabes. O Brasil precisa voltar a ser ator em grandes questões mundiais,
aprofundar a relação com a África, um dos continentes que mais cresce
no mundo. Nos aproximamos muito da África motivados pela tradição
cultural, religiosa e a composição étnica de nosso povo, mas também por
razão econômica. Se considerarmos a África como um país, seria o nosso
quarto parceiro econômico. Atrás de China, EUA e Argentina, à frente da
Alemanha.
Mas houve política deliberada de desmontar nossa política externa
como também de destruir nossos instrumentos. Cito nossas empresas que
tinham imensa presença na África, mas já não é a mesma coisa. É preciso
punir corruptos, mas sem punir as empresas. É preciso manter capacidade
do BNDES de financiar serviços e exportação de bens.
O moralismo vigente entre agentes de Estado como os que atuam na Lava-Jato dificulta a promoção comercial?
A criminalização ao apoio às empresas brasileiras é lamentável. A
Volkswagen enfrentou um grave problema na Alemanha, o diretor foi punido
pela Justiça do país, mas a empresa foi preservada. Ninguém ouviu falar
que a empresa é corrupta. Hoje em dia as empresas brasileiras de
construção viraram sinônimo de palavrão. Precisamos mudar isso. Essa
visão neoliberal que predomina não nos interessa. Abre-se espaço para as
empresas estrangeiras e enfraquecemos as nossas dentro do Brasil e no
exterior. Vai ser preciso trabalho cultural para mostrar às pessoas a
importância das empresas nacionais. Ninguém vai defender a corrupção.
Ninguém vai dizer que a corrupção é nossa, como se disse no passado que a
tortura era nossa. Mas é preciso distinguir os corruptos das ações
positivas externas das empresas brasileiras. E preciso defender as
estruturas de apoio institucional a essas empresas, que, em linguagem
militar, em última análise, são um instrumento de poder e, se forem
usadas bem, de solidariedade também. Europa, China EUA estimulam a
presença externas de suas empresas. E quando ocorreram escândalos, não
se ouviu falar que vieram aqui pedir informações sobre elas. Resolvem
lá, internamente. Já o Brasil, não, foi lá ao patrão dar todos os dados
de nossas empresas. E, provavelmente, quem está ocupando o lugar de
nossas empresas nos mercados externos são empresas dos EUA.
Estamos vivendo momento crucial. O que vai determinar se o Brasil vai
ter condição de se recuperar nos próximos cinco ou dez anos é se
teremos condição de exercer a soberania popular. Se o povo brasileiro
puder escolher seu presidente livremente. Para isso é preciso não só
ouvir a voz do povo, como também o Brasil cumprir suas obrigações e
tratados internacionais aos quais aderiu livremente e cujas normas
obrigatórias. Se não cumprir, se transforma em pária internacional. Ai
mesmo é que acabou.
Fonte: Publicado no Brasil 247
Nenhum comentário:
Postar um comentário