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Roupas e pertences de venezuelanos são queimados durante o conflito em Pacaraima (RR). Foto: Avener Prado/Folhapress |
''Assim que virar o ano, você tá fodido, japonês.'' Um rapaz
aproximou-se de mim na rua, disse a frase que está no início deste
texto, sorriu de canto de boca e, junto com outro, aparentando a mesma
idade, seguiu seu caminho. Calmamente. Não olhou para trás para ver
minha reação. Decerto, achou que não precisava, provavelmente porque não
era a primeira vez que tentava intimidar alguém.
Óbvio que não levei a sério o que disse – o bom de já ter recebido muitas ameaças é que você consegue diferenciar facilmente um frango fanfarrão da galera sinistra que não brinca em serviço. Mas não deixa de ser surpreendente a facilidade com a qual alguém fala isso a um estranho na rua como se estivesse pedindo Toddynho na padaria.
O Brasil está normalizando a
violência como uma resposta ao mensageiro que traz notícias
consideradas mentirosas porque não confirmam uma visão de mundo.
Violência usada por quem defende o seu direito de lutar contra o direito
dos outros.
Entidades como a Anistia Internacional, a Repórteres
sem Fronteiras, a Artigo 19 e a Human Rights Watch já consideram o
Brasil um dos lugares mais perigosos em todo o mundo para um jornalista
exercer sua profissão, com as ameaças, agressões e dezenas de mortos nos
últimos anos.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
(Abraji) registrou, até agora, 70 ocorrências de assédio em meios
digitais contra jornalistas no contexto eleitoral. Elas se somam a
outras 59 agressões físicas registradas, em um total de 129 violações
contra profissionais de imprensa relacionadas às campanhas em 2018.
Para
além da contagem da Abraji, são frequentes os relatos de colegas
jornalistas que foram ameaçados, perseguidos e agredidos, vítimas de
assédio on-line e offline por parte de fãs do candidato Jair Bolsonaro
(PSL). Não estou, com isso, dizendo que a extrema direita detém o
monopólio da violência contra profissionais da imprensa – os registros
de agressões por parte de apoiadores do PT ao longo dos anos provam que
não. Mas o ex-capitão não repudia os atos de sua tropa. E a virulência, a
quantidade e a frequência desses ataques têm sido bem maior.
Da
mesma forma que alguns tentam impor um falso paralelismo entre o risco à
democracia representado pela ascensão de Jair Bolsonaro e o retorno do
PT ao poder, há quem queira fazer crer que, nestas eleições, jornalistas
têm sido atacados pelas turbas dos dois principais colocados de forma
igual.
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Folheto alemão sobre a queima de bruxas em Derenburg, na Alemanha, em 1555. Foto: Reprodução |
Diante dessa situação, parte das empresas de comunicação noticiam os
ataques e prestam todo o suporte, jurídico e pessoal, aos seus
jornalistas. E há aquelas que fazem de conta que nada aconteceu ou
menosprezam o ocorrido. Para essas empresas, ainda bem que a maioria de
nós, jornalistas, não se reconhece como trabalhador, nem tem espírito de
grupo, caso contrário, muitos já teriam cruzado os braços.
Tanto a
eleição presidencial brasileira de 2014 quanto a de agora, como o
pleito que escolheu Donald Trump presidente dos Estados Unidos, podem
ser vistos como momentos nos quais a frágil costura dos plurais e
contraditórios retalhos sociais de ambos os países se rompeu. Como
detesto esse linguajar de sociólogo de botequim, traduzo para o
vernáculo: momentos que deu ruim.
O ódio e a intolerância não
foram criados nessas horas, mas fermentam há muito tempo, talvez desde
as fundações dessas países que ''foram'' as duas maiores sociedades
escravistas modernas. E que seguem seus genocídios de jovens pobres e
negros pela ação direta ou pela anuência do Estado.
A incapacidade
de colocar-se no lugar do outro e entender que ele merece a mesma
dignidade que sonhamos para nós mesmos esteve sempre presente. Mas não
estava distribuída pela internet, conectada pelas redes sociais,
amplificada pela popularização de smartphones e organizada por grupos
políticos interessados em moldar a opinião pública e o processo
eleitoral por meio digital.
Fábricas de notícias falsas estão
aprofundando a ultrapolarização, levando o país às vias de fato,
incitando a população e municiando-a para o confronto. Mas o conflito
deflagrado e fermentado pelo rancor ao antipetismo no período eleitoral
poder ser apenas o início. O receio é o que pode acontecer no dia
seguinte às eleições, dependendo do resultado.
O grosso da
população, incendiada no período eleitoral, deve voltar ao ''normal''
após a apuração dos votos da mesma forma que houve uma descompressão
após a votação do impeachment. O que não significa que parte da
sociedade não se mantenha em guerra, alimentada pelo ressentimento ou
pelo não reconhecimento de derrota eleitoral de seus líderes.
Vai
demandar um exaustivo trabalho de redução de animosidades e de
sinalização ao lado derrotado por parte do eleito. O problema é que nem
todos os candidatos aceitaram essa distensão. Até porque o medo pode ser
um excelente instrumento de governo.
Caso Bolsonaro vença, grupos
radicais, sentindo-se empoderados pela mudança de governo, vão se
sentir à vontade de ir às ruas, atuando como milícias políticas, para
monitorar e punir opositores do governo, militantes pelos direitos
humanos e jornalistas? Ou, em caso de derrota, eles também sairão às
ruas para se vingar? Essas dúvidas pairam sobre várias redações e
organizações da sociedade civil sem uma resposta simples.
Durante o
processo de impeachment, o ''vermelho'' se tornou a cor errada por um
longo tempo, levando a pessoas que vestisse essa cor fosse punido. A
perseguição ideológica de um certo ''macarthismo à brasileira'' pode se
instalar por aqui, bem como um clima de caça às bruxas a toda ideologia
que não seja aquela que não se afirma como ideologia e que, por isso,
mais ideológica é. Porém, ao invés de acusar inimigos apenas de
comunistas, como ocorreu nos Estados Unidos da década de 50, pessoas
inocentes podem ser acusadas de pedofilia, por exemplo.
Debater
história em sala de aula pode virar delito passível de demissão, ainda
mais quando recebemos notícias como a do Colégio Santo Agostinho, no Rio
de Janeiro, que retirou o livro ''Meninos Sem Pátria'', de Luiz Puntel,
da lista de leitura do sexto ano. Lançado em 1981, o livro – em sua 23ª
edição – trata da história de uma família que precisa sair do Brasil
após o jornal onde o pai trabalho ser invadido durante a ditadura
militar e ele passar a receber ameaças. História que conta como é viver a
infância e adolescência longe de casa. Grupos de pais se revoltaram
contra o livro por considerá-lo ''comunista''.
É triste. Porque há uma geração de brasileiros que podem não conhecer a liberdade que seus pais tiveram.
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Problema global: Marcha de racistas em Charlottesville, EUA. Foto: Andrew Shurtleff/The Daily Progress |
A parte mais preconceituosa e discriminatória do politicamente
incorreto tende a ser tornar revolucionária na voz de alguns
autointitulados humoristas. Nesse sentido, refugiados e trabalhadores
estrangeiros podem passar a ser alvos de xenofobia ainda mais explícita,
tornando o caso dos haitianos alvejados com projéteis em São Paulo uma
brincadeira de criança. Grupos extremistas pegam carona em todo
esse processo, usando o contexto para pautar ideias violentas e
absurdas. Jornalistas, sejam eles conservadores ou progressistas, são
calados, não necessariamente pelo governo, mas por milícias digitais e
convencionais que atual livremente, caso não contem a ''verdade'' que
interesse a quem esteja no poder.
Acho que este momento eleitoral é
importante para olharmos para nossas entranhas e discutirmos que tipo
de sociedade queremos ser. Devido à pluralidade de nossa composição, não
é possível imaginar que o melhor modelo não seja o de seguir a vontade
da maioria, garantindo, contudo, o respeito à dignidade de todas as
minorias em direitos. Para isso, é necessário pensar novas formas de
fortalecer a esfera pública e trazer para dentro dela a própria
população, com todos os seus matizes ideológicos, garantindo que o
discurso violento e opressor (mais palatável e que mexe com nossos
sentimentos mais primitivos e simples), que ecoa e repercute fácil, não
baste em si mesmo.
O problema é que não se qualifica o debate,
para evitar a hegemonia desse discurso violento, apenas através de ações
individuais. Você precisa de uma ação em escala, o que teríamos – na
minha opinião – através do Estado – que é o espaço que regula a
concepção de educação e os parâmetros educacionais. Ou seja,
precisaríamos repensar o ensino para melhorar esse debate público. O que
fazer, contudo, quando o Estado está capturado por esse pensamento?
Como
fazer isso em um tempo em que o Estado pode estar tomado por quem não
vê a deflagração do tecido social como um problema, mas que surfa nesse
medo e nessa insegurança, e que acha que o modelo de educação plural e
pública está fadado ao fracasso, é um desafio que teremos que responder.
O mais rápido possível, se quisermos ter um futuro.
Perdi a
quantidade de vezes que fui xingado e ameaçado ou que me acusaram de
coisas que nunca fiz, aos gritos, em restaurantes, supermercados e
outros espaços públicos nos últimos anos. Já fui perseguido e chegaram
às vias de fato, tendo sido cuspido e derrubado na rua. Grandes empresas
já pagaram campanhas de difamação, milícias digitais criaram notícias
falsas contra mim. O Ministério Público Federal recebeu e solicitou
investigação policial de ameaças graves que recebi. Afinal de contas,
tratar de direitos humanos e trabalho escravo é crime no Brasil.
Os
Camisas Negras, do fascismo italiano, atacavam jornais, movimentos
políticos, sindicatos, grevistas, intelectuais e quem ousasse ir contra
os ideais que seus líderes defendiam. Pregavam, através do medo e da
porrada, o nacionalismo e repudiavam o comunismo, o liberalismo e o
pacifismo. Seria leviano comparar dois momentos históricos diferentes em
poucas linhas. Mas a Itália da primeira metade do século 20, não
contava com nossa tecnologia de comunicação, que garante que ações de
justiciamento sejam promovidas de forma imediata e massiva.
É
assustador saber que alguém visto como ''normal'' e ''comum'' pode ser
capaz, nos contextos histórico, político e institucional apropriados,
tornar-se o que convencionamos chamar de monstro. Ou seja, os monstros
são nossos vizinhos ou podemos ser nós mesmos. Pessoas que colocam em
prática o que leem todos os dias na rede e absorvem em redes sociais:
que seus adversários políticos e ideológicos são a corja da sociedade e
agem para corromper os valores morais, tornar a vida dos ''cidadãos
pagadores de impostos'', um inferno, e a cidade, um lixo. Seres
descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência,
que não se encaixa nos padrões estabelecidos do bem.
O problema
não é apenas um governo que não se preocupe com os direitos fundamentais
e sim um governo que não controle seus seguidores – que, nas ruas ou na
rede, ataquem quem defenda que todos, absolutamente todos, nascem
iguais perante à República.
A depender do que aconteça e de não
sermos suficientemente competentes em desarmar a bomba, o fato de eu
estar ''fodido'' será o mais insignificante dos problemas.
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