Por Eugênio Aragão
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Eugênio José Guilherme de Aragão |
Quando a Alemanha foi derrotada, em 1945, após uma guerra de
extermínio bestial que deslanchou contra seus vizinhos, a maioria da
população alemã pretendeu não ter nada a ver com isso. Envergonhada,
escondeu-se no silêncio por mais de duas décadas. Precisou de os filhos
dos partícipes darem o basta à hipocrisia e exigirem esclarecimento
sobre o que ocorreu, para as instituições se depurarem do mofo do
passado fascista e se renovarem democraticamente. Fazer a passagem da
assunção da verdade e da promoção da autocrítica foi um pressuposto
civilizatório para a Alemanha se restabelecer altiva e livre no seio das
nações.
O Brasil não passou por uma guerra das proporções daquela que arrasou
a Europa e cobrou seu tributo com a vida de dezenas de milhões de
inocentes. Mas passa por um conflito secular não menos brutal, entre os
que se autoproclamam donos do poder e os excluídos de todas conquistas
econômicas e sociais resultantes de seu trabalho suado e não
reconhecido. Também essa injustiça tem nos apresentado uma alta conta.
Somos um país atrasado pela educação de baixíssima qualidade, pelo
estado mórbido crônico de sua população sujeita a um sistema de saúde
pública em frangalhos, pelo déficit habitacional que impõe substancial
parte de brasileiras e brasileiros viverem em barracos sujos, sem
saneamento e rodeados de violência criminosa.
O pior de tudo isso que ocorre no Brasil é a incapacidade de nossos
autoproclamados donos do poder de exercer um mínimo de autocrítica. São
autossuficientes, arrogantes e se creem generosos e bondosos. Veem como
virtude o que não passa de obrigação. Restituir a liberdade aos escravos
no século XIX, por exemplo: ainda que tenha o Brasil sido o último país
do chamado mundo ocidental a abandonar tal vergonhosa prática, a elite
brasileira acha que foi muito virtuosa na promulgação da lei áurea. Foi
nada. Despejou milhões de afrodescendentes na mais profunda miséria e
nunca cogitou de lhe pedir perdão pelos séculos de tratamento cruel e
muito menos de indenizar sua diáspora forçada, seu trabalho e seu
sofrimento. Até hoje, nossos habitantes da redoma escandinaviforme de
bem-estar social olham para afrodescendentes com desdém, naturalizando,
banalizando seu estado de despossuimento crônico. Alguns ainda abraçam
cínicas explicações espíritas, a qualificarem o destino desgraçado
desses pobres como resultado da evolução espiritual… e se acham ainda
muito gente boa por isso.
Dá asco o descompromisso com a miséria alheia. Dá vergonha de ser
brasileiro e ver uma senhora com sua filha clamando por ajuda na porta
do supermercado, pedindo apenas um saco de feijão, e ser vista pela
maioria dos transeuntes como estorvo, indiferentes com a injustiça
estampada em sua frente. Temos um déficit enorme de empatia, o que chega
a ser doentio, psicótico. E, quando damos alguma esmola, o fazemos no
mais das vezes para cultivar virtudes inexistentes, para nos
assegurarmos de nossa autoimagem de bonomia, proclamada
narcisisticamente aos quatro ventos das redes sociais.
Mas, índios são preguiçosos, quilombolas gordos e incapazes de
procriar de tão indolentes, negros são violentos e abusados,
homoafetivos são desnaturados e mulheres que lutam por seus direitos não
passam de histéricas que não conhecem o seu lugar. – Esse é o senso
comum, assumido por muitos e enrustido por outros, sobre o lugar do
próximo em nossa sociedade. Somos uns trogloditas muito distantes do
estágio civilizatório mínimo da contemporaneidade. O preconceito aqui
viceja numa estupidez prepotente não encontrada alhures.
O ódio político disseminado contra a esquerda partidária, em especial
contra o Partido dos Trabalhadores e suas lideranças, por intensa
campanha de desacreditamento da solidariedade social, se espalhou nesse
ambiente como uma epidemia. O alvo da ira ousara, quando no governo,
colocar em cheque essa soberba autoimagem de brandura e magnanimidade de
brasileiras e brasileiros afortunados. Tirou-os de seu delírio para
obrigá-los a ver a realidade e a arregaçar as mangas para transformá-la
ou ser expulsa de seu berço esplêndido. Treze anos de governo petista
sacudiram os fundamentos dessa maya elitista.
A resposta não tardou de vir na forma de militância política
da bronca. Bolsonaro e sua direita fascista, pseudomoralista são o
chorume dos dejetos da discriminação social, do desprezo da miséria
alheia e da recusa de empatia. Usam sentimento falso de brasilidade
nacionalista para criar um estado de espírito de agnação entre idiotas
autossuficientes e um sentimento coletivo de potência a desarmar os
mecanismos de autocontrole e de autocontenção de instintos mais
violentos. Propagam fobias, ilusões e mentiras em redes sociais e pelo
discurso da propaganda política. Vivem num mundo artificial de
conspirações contra si, estimulando a paranoia coletiva. E tudo isso
para deixar o Brasil podre do jeito que gostam.
É nesse momento que se encontra o Brasil, numa encruzilhada entre a
retomada do caminho da autocrítica e da superação histórica e a rota da
estagnação viciada na sociedade escravocrata que ainda não deixamos de
ser. De um lado, Lula, o preso, refém do deterioração institucional, do
golpe raivoso contra o progresso social; de outro, Bolsonaro e seu
exército de zumbis desmiolados a serviço do atraso, crias involuntárias,
filhos ilegítimos desse golpismo de nossa elite, que não respeita voto e
nem soberania popular.
A deterioração institucional que mantém Lula encarcerado corresponde à
profunda contaminação de carreiras de estado pelo corporativismo e o
sequestro da soberania popular pela burocracia sem voto. “Yes, we can”
parece ser o grito de guerra de agentes de estado mobilizados pela mídia
oligopolizada e tomados por um populismo fascista.
Expressão disso é a ousadia indiferente de juízes, membros do
ministério público e funcionários da polícia no seu confronto com a lei.
Em nome de um tal “combate à corrupção”, que há muito já se converteu
num combate à política, tudo é permitido, até desacatar ordens de
instâncias superiores que, na avaliação pessoal desse ou daquele agente,
não se acha conforme com os fins do combate. O episódio que levou ao
arranca-rabo entre o Sérgio Moro de sempre e o desembargador Favreto
oferece um bom exemplo disso.
Depois que destituíram a presidenta da república eleita através de um
procedimento parlamentar fraudulento de impedimento não há mais limites
para a ousadia. O judiciário em peso aderiu à iniciativa, não só
cruzando o braço na tarefa de garantir os estado democrático de direito,
mas ativamente admoestando o grupo político em torno da destituída,
mormente o PT, para que, com reputação abalada, nunca mais tivesse uma
chance de governar. A prisão de Lula foi a cerejinha desse bolo
golpista. E tudo que permitisse Lula reaparecer tem sido furiosamente
bloqueado, a começar por sua candidatura. Dane-se a legislação
eleitoral, danem-se os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil
na defesa dos direitos humanos e particularmente do devido processo
legal.
A palavra de moderação dos órgãos de monitoramento de tratados de direitos humanos não valem nada.
Na outra ponta, os golpistas, dentro e fora do judiciário, assustam-se e
fazem carinha de nojo para o bolsonarismo. Criaram-no ao tentarem
destruir a imagem do governo democrático inclusivo liderado pelo PT.
Estimularam o ódio e o desrespeito ao resultado de eleições. E agora
veem o incêndio que provocaram atingir os telhados de suas casas de
conforto e abundância. Burgueses e seus asseclas na burocracia não
gostam de se identificar com esses brucutus que expressam sem pejo seus
preconceitos misóginos, homofóbicos e racistas. Não que eles não sejam
tudo isso, mas o estilo da Casa Grande é mais hipócrita. É assim que
sobreviveu por mais de quinhentos anos neste Brasil atrasado. Adoram se
exibir de um lado liberal nos costumes, pelo glamour desse falso
liberalismo que não adentra a essência de uma sociedade dividida entre
os que tudo têm e os que nada merecem. A aparência de liberal, gentil e
tolerante é seu principal ardil para enganar trouxas explorados que se
orgulham desse país “cristão e livre, graças a Deus”.
Mas os trouxas resolveram exagerar na dose e achar que cultivar
abertamente o preconceito faz parte da gramática do Brasil cristão e
livre. Que negros, feministas, homoafetivos, índios e esquerdistas vão
para o inferno! A liberdade, para esses imbecis, é poder ser
politicamente incorreto e rir de quem se choca com sua incorreção. A
cretinice solta nas redes sociais parece confirmar as suposições desses
beócios. Sentem-se livres para se comportarem feito nazistas.
Parte da elite teme que sua cara de bom-moço sofra trincas
irreparáveis com a ação do exército desses fascistas idiotas. Afinal,
sua aceitação nos salões financeiros internacionais sempre foi suportada
por um certo flair de gente boa que brasileiros disseminaram mundo
afora. Mas é tarde. Nem Henrique Meirelles e nem Geraldo Alckmin, os
representantes dessa elite, conseguem alçar voos mais altos nesta
eleição. Cederam seu lugar para a cria de seu ódio de classe.
O cenário é muito parecido com o da Alemanha de Weimar no início da
década de trinta. A burguesia não gostava dos nazistas baixo-nível em
torno de Adolf Hitler e sua SA barulhenta, mas não tinha mais gás para
enfrentar a massa de descontentes com sua política de negação de
direitos e de socialização da miséria: ou era Hitler, ou era a esquerda
política. E, por mais nojo que tinha dos nazistas, acabou embarcando na
aventura de lhes entregar o governo, achando que os colocaria nos
trilhos da institucionalidade, por bem ou por mal. Ledo engano. Os
nazistas os atropelaram e levaram a Alemanha e o mundo para a maior
tragédia da modernidade com sua doutrina de ódio e de intolerância.
A encruzilhada está aí. Ainda é tempo para pensar. Que nossa
elitezinha hipócrita não caia na mesma esparrela. Está na hora da
autocrítica e é melhor fazê-la antes que a tragédia nos engula a todos.
Por isso, #Elenão.
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