'Consensos fabricados e apoios: muita
gente tem responsabilidade no atentado contra a população via reforma
previdenciária'
Em menos de dois meses de governo
Bolsonaro, as faturas para apoio a tanto absurdo começam a se mostrar como
notas promissórias que serão pagas e talvez a principal delas deu suas caras
nessa semana: a “reforma” da Previdência.
Basicamente, tudo que a reforma poderia
fazer para dificultar mais a vida do cidadão e cidadã, sobretudo pobre, ela
faz. Aumenta a idade para aposentadoria (igualando homens e mulheres, um
absurdo considerando a dupla, tripla jornada feminina), aumenta o tempo de
contribuição necessária para 40 anos, reduz e limita a possibilidade de acúmulo
de benefícios.
Da mesma forma, a reforma convoca uma
nova peripécia brasileira para a mesa, ao conceber a capitalizaçãocomo
forma de financiamento da previdência. Seria, em simples linhas, a poupança que
a pessoa fará ao longo de sua vida para servir como previdência no futuro. Tudo
lindo né? Só que pensa que em vez do modelo atual de contribuição por parte de
empregado, empregador, Estado (modelo tripartite), a capitalização será
financiada somente pelo… empregado! Olha que beleza.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer o
quanto é irreal conceber esse modelo quando boa parte da população ganha
seu polpudo salário mínimo – muitas vezes toda uma prole – e não terá
condições nunca, no andar da carruagem, de fazer uma poupança qualquer, quanto
mais uma capitalização para previdência.
Além disso, é mais um boi da boiada que
atravessa os limites democráticos ao se romper com o modelo tripartite
previdenciário para colocar no lombo do trabalhador uma fórmula perfeita para
matar pobre e encher o bolso de banqueiro de dinheiro da classe média, tudo com
as bênçãos das panelas.
A “reforma” ainda vem com mais uma de
suas sacadas: a transferência dos parâmetros da previdência da constituição
para lei complementar, afetando diretamente o quórum necessário para votação e
aprovação de outros pacotes de maldade. Atualmente mexer na previdência deve
passar por duas vezes nas casas, aprovação por no mínimo 3/5 dos votos e outras
dificuldades inconvenientes mais. Por isso, não basta saquear, é preciso
garantir que da próxima vez o roubo seja mais fácil.
Parênteses: e há quem diga que o olho do
governo está justamente em baixar a aposentadoria compulsória por lei
complementar para 70 anos e, assim, ter a possibilidade de indicar quatro
ministros do Supremo nesse mandato, sob o anúncio de que está a se fazer um bem
para a sociedade. A conferir os próximos capítulos.
Mas talvez o maior tapa na cara que se
pode dar na população pobre seja a redução do auxílio a quem não contribuiu com
a previdência de um salário mínimo para R$ 400,00. Eu sinceramente fiquei
pensando em modos mais cruéis de forçar a miséria e a morte de milhões de
pessoas e confesso que tive dificuldades para bolar algo tão sórdido quanto
isso. Mas calma, dirão cúmplices, depois de 10 anos aumenta de R$ 400,00 para
um salário mínimo e segue o baile…
E o que a reforma tem a dizer para as
milhões de pessoas na informalidade? Seguindo a lógica do capítulo acima, as
consequências para esse enorme segmento da população serão cruéis, inclusive levando-se
em consideração que segmentos da população empreendem por necessidade frente às
diversas opressões estruturais postas. Segundo levantamento da economista
e professora da Unicamp Marilane Teixeira, com base do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), no último trimestre, o trabalho informal
atingiu 52,4% das mulheres negras brasileiras.
Mas os militares podem ficar tranquilos
porque eles não estão nesse bolo. É voltado só a raspa do tacho, a qual vai
experimentar essa beleza de medida para o país, isto é os policiais militares,
policiais civis, bombeiros, toda essa turma que tem muitos que fazem arminha
com a mão e gritam mito. Agora, no país do mito, além de ganharem “ótimos
salários”, vão poder viver mais essa maravilha em nome do capitão que está com
seus direitos previdenciários muito que bem protegidos.
Há muito mais o que ser dito sobre, e, a
bem da verdade, a maioria do país pagará o preço, bolsominions ou não. E o
pior: é uma reforma da previdência sem um projeto de nação. Ataca-se a
previdência ao mesmo tempo em que há o aumento de desemprego no país, seja pela
precarização da massa de trabalhadores afetada pelo golpe, reforma trabalhista
e afins; seja pela substituição da mão de obra por tecnologia ou por uma série
outra de fatores.
Fico me perguntando: como que se pode aceitar isso? Pergunto a pessoas, parlamentares, inclusive os ditos conservadores.
Como que pode compactuar, relativizar,
silenciar ante um projeto que empurra pessoas para subsistência precária desse
jeito? Eu juro que não entendo, principalmente de quem teve acesso a informação
e educação formal durante a vida.
Mas enfim, a Globonews, que dá o tom da
maior emissora do país, está em festa e os problemas desaparecem quando algo
tão suculento é posto na mesa. Tudo se esquece e se perdoa quando o bolo da
previdência é posto à mesa e dividido entre emissora e anunciantes que querem
lucrar ao máximo no lombo da população e impossibilitar qualquer subsistência
digna que seja longe desses bolsos.
Vale lembrar que o capitão mudou 180º seu entendimento sobre a crueldade da reforma. Um capitão que abandona a trincheira no primeiro aperto é digno de lealdade?
Aí tudo se perdoa. No governo Bolsonaro,
já não existe mais nas telinhas o “escritório do crime” no gabinete da família
com diretas relações ao assassinato de Marielle Franco, não existe mais Queiroz
depositando dinheiro na conta da primeira dama e não conseguindo explicar
movimentação de milhões na sua conta de motorista; não existem mais laranjas,
não existe corrente de zap nas eleições comprovadamente mentirosas e
manipuladoras.
Tudo assunto do passado, vamos falar
sobre os benefícios da “necessária” reforma, com um ponto aqui e outro acolá
que podemos conceder a quem ousa reclamar. Vale aqui dizer que a reforma da
previdência jamais seria possível sem uma campanha incessante de inverdades,
análises rasas e sonegação do ponto de vista diferente. Não se diz que ela não
é deficitária, como tanto se alega, não se problematiza outros gastos do
governo brasileiro, como a fatia de quase 40% a juros e amortização de dívida
que persiste desde o período colonial, e finge que pessoas de muito gabarito
com esse posicionamento simplesmente não existem.
A reforma da previdência não começou nessa semana, mas sim é um processo que começou há muitos anos com desinformação e fabricação de consensos.
Mas deve ser uma “boa reforma”, né?
Afinal, o presidente do Itaú, do Santander e outros estão falando bem dela nos
jornais. Ora essa, como pode ser ruim? Nesse sentido, a falta de
comprometimento com uma República de bem-estar social é algo que me choca,
ainda que se parta da análise de todas essas famílias que saqueiam por aqui há
gerações, desde as capitanias hereditárias.
E há ingênuos que acham que podem fazer
uma análise “fria” do que está na mesa no sentido de “ah, com esse ponto eu
concordo”, “precisa de alguns reparos”, como se não fosse nítida a intenção por
trás de tanta maldade: acabar com a previdência pública para classe média,
desestimular qualquer esperança de aposentadoria a milhões e matar pobres. Uma
tríade do mal.
O mais frustrante é que esse país
poderia ser muito melhor e há propostas justas nesse sentido. Em vez de ir para
cima dos pobres desse jeito, um país preocupado com seu futuro poderia olhar
para o Renda Básica de Cidadania defendido pelo Senador Eduardo Suplicy e
adotado em tantos países, como a Finlândia. Uma quantia mensal a todos os
brasileiros e brasileiras para um patamar mínimo de dignidade. Seria possível
isso, só para ficarmos em um exemplo, mas infelizmente quem está no poder é um
grupo que se nutre do ódio, da miséria intelectual e da falta de compromisso
com qualquer direito para o povo.
A reforma é um crime contra o país e não
é possível que essa situação permaneça numa normalidade democrática. Muita
coisa há de ser revista e com toda certeza esse saque na previdência será uma
delas.
*Editor de Justiça no site de
CartaCapital. Advogado, fundou o site Justificando, onde foi diretor de redação
por quatro anos.
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