'Com essa
perniciosa ideia de que quem estuda deve aprender a pensar por conta própria,
Paulo Freire tornou-se o grande vilão do Brasil em 2019. Educador era Cristão e
foi preso e exilado porque propunha a liberdade em primeiro lugar'
Por Nirlando
Beirão, CartaCapital
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Imagem: Instituto Paulo Freire |
A educação pode
reprimir ou libertar. Pode incentivar a busca da verdade ou impor um acervo de
dogmas. Pode ensinar-lhe o respeito a opiniões diferentes da sua ou transformar
você numa criatura autoritária e insensível. É, a educação inclui o risco de forjar
cidadãos e de difundir o vírus da democracia. Por isso é que no Brasil 2019 o
grande vilão, depois de Lula,
é Paulo Freire.
A barbárie
tratou de retirar o educador cosmopolita e consagrado de seu nicho pedagógico
para expô-lo à execração pública como subliminar porta-voz do comunismo ateu –
agora, enfim, como prometem as autoridades, em vias de extinção em terras de
Pindorama.
Paulo Freire,
morto em 1997, assombra os bolsotários instrumentalizados pelos charlatães
evangélicos e pelas pregações obscenas do astrólogo Olavo de Carvalho. A ironia é que, para Paulo Freire, educar é
encaminhar o aluno em direção às múltiplas escolhas do livre-arbítrio.
O pastor, o
padre, o Sagrado Testamento, que fiquem longe das salas de aula. Um dos livros
de Paulo Freire é intitulado Educação como Prática da Liberdade (Editora Paz e
Terra, 1967). Mas o tal comunismo supostamente professado por ele não é, como
dizem os inimigos, a supressão da liberdade? Seria este mais um despiste dos
vermelhos? Como formar disciplinados servidores do Partido incentivando neles o
senso crítico e o apreço à divergência? Chamem Olavo de Carvalho para decifrar
o enigma.
Era cristão, foi
preso e exilado porque propunha a liberdade em primeiro lugar!
“Vou entrar com
um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro”, prometeu o
candidato da extrema-direita na campanha eleitoral. Ele jamais leu uma linha
que seja escrita pelo educador, tampouco o fizeram os que se apressam em imitar
o incendiário, atiçando contra Paulo Freire a fogueira do auto de fé.
Para eles, a
pedagogia do oprimido – título da obra mais conhecida do professor
pernambucano, nascido em 1921 – está no mesmo escaninho dos malditos
imaginários, como o marxismo cultural, a evolução das espécies e Jean Wyllys.
O próprio Paulo
Freire já vaticinava, em 1968, em seu exílio no Chile, que não seria fácil o
embate contra os trogloditas aliterados – tais como os que assumiriam o poder
no Brasil, meio século depois.
“Nunca pensei
ingenuamente”, escreveu, “que a defesa e a prática de uma educação que
respeitasse no homem a sua ontológica vocação de ser sujeito pudesse ser aceita
por aquelas forças cujo interesse básico estava na alienação do homem e da
sociedade brasileira. Na manutenção desta alienação. Daí que coerentemente se
arregimentassem – usando todas as armas contra qualquer tentativa de
aclaramento das consciências, vista sempre como séria ameaça a seus
privilégios. É bem verdade que, ao fazerem isso, ontem, hoje e amanhã, ali ou
em qualquer parte, essas forças distorcem sempre a realidade e insistem em
aparecer como defensoras do Homem, de sua dignidade, de sua liberdade,
apontando os esforços de verdadeira libertação como ‘perigosa subversão’, como
‘massificação’, como ‘lavagem cerebral’ – tudo isso produto de demônios,
inimigos do homem e da civilização ocidental cristã. Na verdade, elas é que
massificam, na medida em que domesticam e, endemoniadamente, se ‘apoderam’ das
camadas mais ingênuas da sociedade. Na medida em que deixam em cada homem a sombra
da opressão que o esmaga. Expulsar esta sombra pela conscientização é uma das
fundamentais tarefas de uma educação realmente liberadora.”
O pensamento
crítico, em que a dúvida seja sempre mais ampla do que a certeza, é a antítese
de todo e qualquer sectarismo. Paulo Freire era, sim, um homem de esquerda, na
medida em que se ofendia com o capitalismo bárbaro e sonhava com um Estado de
Bem-Estar Social próximo dos países avançados da Europa setentrional.
Mas a paranoia
persistente dos que confundem isso com o comunismo, que se agudizou durante a
ditadura civil-militar, levou-o a um longo exílio, depois de ter sido preso
pelos militares. Pôde experimentar seus ensinamentos no Chile de Allende, na
África Negra em momento fecundo de descolonização, e em dois países de “inclinação
bolchevique”, a Suíça e os Estados Unidos. Só em 1988 é que ele teve a
oportunidade de botar a teoria em prática como secretário da Educação da
prefeita Luiza Erundina, em São Paulo.
“Paulo Freire
era um cristão que tinha um profundo compromisso ético com a defesa da vida do
ser humano em sua plenitude”, defende seu biógrafo, Sérgio Haddad.
“Portanto, era
contrário a qualquer regime que violava direitos fundamentais do ser humano,
seja ele de qualquer natureza. Nos seus últimos escritos apontava sobre a
crueldade de um capitalismo que desistia de melhorar a vida das pessoas para se
transformar apenas em uma competição desregulamentada por mais lucro, assim
como foi crítico dos regimes socialistas que haviam desistido da liberdade e da
democracia. Todos, para ele, regimes violadores dos direitos humanos.”
De todo modo, se
fosse vivo, Freire estaria na trincheira oposta à do atual bloco do poder. Ter
virado o bode expiatório da turma do Mandamento e da tutela, disposta a
patrulhar o comportamento dos professores em sala de aula em nome de uma
determinada “Escola sem Partido”, não é exatamente o tratamento merecido por
aquele que é uma referência capital, em todo o mundo, para trabalhos acadêmicos
na área de humanidades.
Pedagogia do Oprimido é a terceira obra mais citada,
segundo um levantamento feito no Google Scholar, ferramenta de pesquisa
dedicada à literatura acadêmica. O professor associado da London School of
Economics, Elliott Green, analisou as menções nos trabalhos disponíveis na
ferramenta, criada em 2004. Segundo ela, Freire é citado 72.359 vezes, atrás do
filósofo americano Thomas Kuhn (81.311) e do sociólogo, também americano,
Everett Rogers (72.780). Bate pensadores radicais como Michel Foucault (60.700)
e Karl Marx (40.237).
A pesquisa
desconhece Olavo de Carvalho, o xamã do fascismo tropical. O Google Scholar,
provavelmente, deve ser outra das muitas fachadas enganosas do tal “marxismo
cultural”.
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