'A maior parte da
sociedade brasileira tomou conhecimento do que significava o COAF cinco dias
após a eleição, mais precisamente no dia 01/11/2018'
O COAF e o Queiroz
por Auditores-Fiscais pela Democracia (AfpD)
*
Nota Técnica nº 02, de 21 de fevereiro de 2019
Tem gente se
esforçando para esquecer Queiroz. Mas a sociedade quer saber onde ele está e o
que tem a dizer. O AFpD oferece a sua contribuição para que o esquecimento não
prospere.
Queiroz remete à
palavra COAF. O relatório do COAF com as movimentações suspeitas de Queiroz
veio a público em dezembro de 2018, por meio de um vazamento publicado no
jornal O Estadão. Este relatório tinha chegado no Ministério Público do Estado
do Rio de Janeiro – MPE/RJ em 03 de janeiro de 2018 (Folha de São Paulo,
12/02/19). Ou seja, o caso era do conhecimento das autoridades pelo menos desde
o início de 2018.
A partir dessa
cronologia, pode-se inferir que o vazamento ocorreu em algum momento entre
janeiro e dezembro de 2018, sendo publicado pelo Estadão em 06/12/18. Porque
vazamento é uma coisa, publicação é outra. Vazamento é quando alguém tem acesso
indevido a uma informação protegida pelo sigilo fiscal ou bancário. Quando o
vazamento é divulgado pelas mídias, ele se torna público.
Estes fatos
podem ter relação com a forma de funcionamento do COAF e do destino que seria
dado ao órgão logo após a eleição presidencial. Por isso é preciso abordar o
assunto de maneira republicana.
O COAF foi
criado como órgão de controle de atividades financeiras atípicas ou suspeitas
de lavagem de dinheiro. Não convém que se queira dar outro destino ao órgão,
que não deve ser usado nem para proteger amigos nem para perseguir adversários.
Essa premissa
(de não proteger amigos nem perseguir adversários) é importante para o debate,
tanto em relação à transferência do COAF para o Ministério da Justiça – MJ,
quanto em relação às propostas para afrouxar os controles sobre as
movimentações de parentes de políticos. Circular do Banco Central propõe
aumentar o piso do valor movimentado, para fins de acompanhamento, de 10 mil
para 50 mil reais.
Recentemente o
Banco Central propôs acabar com o monitoramento obrigatório dos parentes e
pessoas de relacionamento próximo de políticos. Se essa proposta do atual
governo estivesse em vigor, nada ficaríamos sabendo das movimentações suspeitas
de Queiroz, assessor de Flávio Bolsonaro.
Além das
mudanças anunciadas em relação ao COAF, o governo baixou um Decreto dando poder
a mais de 1.200 pessoas ocupantes de cargos de confiança no governo
federal para impor o sigilo sobre documentos públicos por um prazo de até 25
anos. A Câmara dos Deputados impôs uma derrota ao governo, rejeitando o
decreto. Porém, o decreto ainda precisa ser apreciado pelo Senado.
As modificações
das normas legais e do funcionamento de órgãos públicos está ocorrendo sem
nenhuma participação da sociedade. São baseadas também em falsas premissas. Uma
delas é que o COAF seria um órgão ineficiente antes de ser descoberto pelos
atuais mandatários. É verdade que a estrutura do COAF é pequena, mas isso não é
sinônimo de ineficiência. Há razões para supor que a transferência é apenas um
pretexto para fazer do COAF algo que ele nunca foi: um órgão a serviço de
interesses políticos, e não da sociedade.
O COAF foi
criado pela Lei 9.613/98. Durante vinte anos, funcionando no âmbito do
Ministério da Fazenda, abasteceu com seu trabalho outros órgãos de fiscalização
e investigação, como Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público.
Atuando de forma técnica, o nome do órgão nunca esteve envolvido em escândalos
de vazamentos seletivos de pessoas sob investigação.
A maior parte da
sociedade brasileira tomou conhecimento do que significava o COAF cinco dias
após a eleição, mais precisamente no dia 01/11/2018, quando o presidente Jair
Bolsonaro anunciou a transferência do COAF para o Ministério da Justiça – MJ.
Naquele momento, quase ninguém – pelo menos na sociedade civil – sabia da
existência do relatório do COAF sobre as movimentações suspeitas de Fabrício
Queiroz, informação que viria a público somente no início de dezembro.
A decisão célere
passou a impressão de que a prioridade absoluta, durante a campanha eleitoral
do presidente eleito, tinha sido o estudo do cronograma de funcionamento do
COAF e do destino a ser dado ao órgão tão logo terminasse a eleição.
Duas semanas antes
do anúncio da decisão do presidente transferindo o COAF, o Ministério Público
Federal – MPF tinha ajuizado os pedidos de mandados de busca e apreensão da
Operação Furna da Onça, onde o relatório do COAF com a movimentação suspeita do
Queiroz constava como um dos elementos de prova. Dois dias antes do ajuizamento
dos pedidos, Queiroz e sua filha Natália tinham sido exoneradas dos gabinetes
de Flávio e Jaír Bolsonaro, o que acabou se revelando uma feliz, ou infeliz,
coincidência.
Em novembro veio
a Operação Furna da Onça. Em dezembro houve a divulgação do vazamento do
relatório do COAF com as movimentações suspeitas de Queiroz no valor de R$ 1,2
milhão. O relatório de Queiroz se referia apenas a um ano, enquanto que nos
alvos da Operação Furna da Onça o período investigado era de quatro anos, o que
causou estranheza para quem conhecia a sistemática de elaboração dos relatórios
do COAF.
O relatório COAF
estava no Ministério Publico desde o início de janeiro. Mas somente três
semanas após a eleição presidencial, em 22 de novembro, Queiroz foi notificado
pela primeira vez a depor para o MPE/RJ. O ex-assessor de Flávio faltou a esse
e a outros dois depoimentos marcados. Também não compareceram os parentes
intimados a depor.
O Globo,
12/12/18, publicou entrevista do presidente eleito sobre a divulgação do
vazamento do relatório COAF de Queiroz:
“O Queiroz não
estava sendo investigado, foi um vazamento que houve ali, não sou contra
vazamento, tem que vazar tudo mesmo, nem devia ter nada reservado, botar tudo
para fora e chegar a uma conclusão. Dói no coração da gente? Dói, porque o que
nós temos de mais firme é o combate à corrupção e aconteça o que acontecer,
enquanto eu for o presidente, nós vamos combater a corrupção usando todas as
armas do governo, inclusive o próprio Coaf”, avaliou Bolsonaro nesta
quarta-feira, durante a transmissão no Facebook.
Dito dessa
forma, pelo próprio presidente, que para avançar no combate à corrupção “tem
que vazar tudo”, pode-se esperar que agentes públicos venham aderir à
prática ilegal, com a crença de estarem dando a sua contribuição ao combate à
corrupção. Infelizmente isso parece estar se confirmando com as notícias
recentes envolvendo vazamentos de relatórios fiscais internos da Receita
Federal, protegidos pelo sigilo fiscal.
Em janeiro de
2019, o jornal O GLOBO divulgou outro relatório do COAF sobre as movimentações
de Fabrício Queiroz referente aos anos de 2014 e 2015, no valor de R$ 5,8
milhões, totalizando R$ 7 milhões movimentados pelo assessor de Flávio
Bolsonaro durante três anos.
O fatiamento em
dois relatórios do valor movimentado por Queiroz chama a atenção, porque o
padrão adotado pelo COAF é o de consolidar todas as informações de uma pessoa
num mesmo relatório. O fracionamento do valor tem implicação direta na seleção
das pessoas a serem investigadas, porque o valor movimentado é um critério
técnico utilizado como parâmetro.
A divulgação do
vazamento do relatório COAF no início de dezembro foi um acidente de percurso
que mudaria o rumo dos acontecimentos. Uma semana após a publicação do Estadão,
o MPE/RJ pediu a produção de um relatório ampliado ao COAF, abrangendo o
período de 2007 a 2018. Os alvos eram Flávio, Queiroz, Nathalia Queiroz, Evelyn
Queiroz (ambas filhas do ex-assessor), Márcia de Oliveira Aguiar (mulher de
Queiroz) e outros investigados. (FSP, 12/02/19)
Por enquanto não
se sabe se esse relatório COAF das movimentações de Queiroz nos anos de 2014 e
2015, divulgado pelo jornal O Globo em janeiro de 2019, no valor de R$
5,8 milhões, foi aquele produzido por solicitação do MPE no final do ano
passado.
Alguns dias
antes da divulgação do vazamento do relatório COAF, em 30 de novembro, Flávio
Bolsonaro tinha se reunido com o promotor do Ministério Público Estadual do RJ,
Cláudio Calo Souza, para quem seria distribuída a investigação envolvendo a
movimentação suspeita de Queiroz após a negativa do STF quanto ao pedido de
foro privilegiado do senador Flávio Bolsonaro.
O promotor deu
essa informação como parte da justificativa para abrir mão de presidir a
investigação: “após profunda reflexão jurídica, em respeito à imagem do MPRJ e
às investigações, até mesmo diante da repercussão que o episódio vem tendo na
mídia, juridicamente entendi ser mais oportuno que a investigação sobre o
senador Flávio Bolsonaro seja conduzida pela Promotoria de Justiça de
Investigação Penal tabelar.”
Transcorridos
quase quatorze meses desde que as autoridades tomaram conhecimento das
movimentações suspeitas de Queiroz, O Globo de 17/02/19, informa que o MPRJ
continua movimentando a investigação internamente, que a mesma “foi enviada
nesta semana para o Grupo Especializado no Combate à Corrupção (Gaecc) do
Ministério Público do Rio de Janeiro…. porque os relatórios do Conselho de
Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que apontaram as movimentações
suspeitas na conta Queiroz são complexos e levam tempo para serem analisados.”
O histórico
serve para demonstrar que os órgãos técnicos não devem atuar com critérios
subjetivos ou com viés ideológico. Precisam respeitar o princípio da impessoalidade
nas decisões que afetam a vida dos cidadãos. O tuíte do presidente do COAF
garantindo que os relatórios COAF são automáticos e que não há intervenção
humana nada explica. No caso Queiroz, há razoáveis indícios de que pode ter
havido sim intervenção humana, pois o relatório foi fatiado. É preciso
transparência, para que a sociedade tenha a garantia de que informações
sigilosas sob guarda dos órgãos de controle não sejam usadas para perseguir
adversários nem para blindar os amigos do governo de plantão.
O histórico
indica ainda que a mudança de rota do COAF teve início após a decisão
presidencial sobre a transferência para o MJ. Em entrevista ao Estadão, em
09/12/2018, o então presidente do COAF, Antônio Ferreira, narra como o COAF
atuava lado a lado com os agentes da Lava Jato que viriam em seguida a comandar
o Ministério da Justiça no atual governo. Disse Ferreira: “Já existe no Coaf
uma “sala de situação”, em que funcionários do órgão mantêm contato
remotamente, por exemplo, com a força-tarefa da Lava Jato no Paraná. Uma das
ideias em discussão é levar funcionários de outros órgãos para salas de
situação na estrutura do COAF.”
É um relato
preocupante. As tais “salas de situação” são um improviso à margem da lei, que
na prática dão ao investigador o poder de escolher pessoalmente as pessoas a
serem investigadas.
Não há vantagens
na transferência do COAF para o MJ, mas há riscos. Há um risco real quando
informações sigilosas são entregues para novas formas de organização que ainda
não foram testadas do ponto de vista da garantia da guarda do sigilo ou da
utilização dos dados sem o respeito ao princípio da impessoalidade.
Além disso, nem
toda irregularidade constatada pelo COAF deve ser tratada como caso de polícia.
Pretende-se inverter a lógica do funcionamento normal do sistema. Primeiro
devem ser buscadas soluções no âmbito administrativo; a instauração do litígio
na esfera penal é uma consequência. A solução correta é simplesmente melhorar a
estrutura do COAF, mantendo-o no seu lugar de origem. Aliás, os órgãos
assemelhados ao COAF são vinculados à Fazenda na absoluta maioria dos países
democráticos.
Você pode ajudar
na luta por por um Estado democrático e transparente:
– converse com
os deputados de sua confiança sobre os riscos de mexer no COAF; defenda a sua
manutenção no Ministério da Economia (a Medida Provisória está no Congresso e
deverá ser votada até abril);
– defenda a
manutenção do valor de 10 mil reais como piso do valor movimentado para fins de
acompanhamento de movimentações financeiras a serem informadas ao COAF
(rejeição da proposta do Banco Central de aumentar para 50 mil reais);
– defenda a
manutenção do monitoramento obrigatório dos parentes de políticos junto ao COAF
(art 4, §1, da Circular 3461/09, que está em vigência –a proposta do
BC foi submetida à consulta pública );
– não permita
que esqueçam Queiroz; insista em perguntar: Cadê o Queiroz?
– pressione os
senadores pela rejeição do Decreto que permite que 1.200 ocupantes de cargos de
confiança no governo possam impor o sigilo sobre documentos públicos.
Charles
Alcantara
Francisco César
de Oliveira Santos
Jane Castello
Wilson Luiz
Müller
*Coletivo de
Auditores Fiscais da Receita Federal, Receita Estadual, Receita Municipal e
Inspeção do Trabalho, comprometidos com a defesa do Estado de bem-estar social,
a democracia e a preservação e fortalecimento das instituições essenciais do
Estado.
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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