'Historiador da PUC de São Paulo expõe o componente eleitoral dos dois golpes, com base em pesquisas atuais e do passado'
Por Rodrigo Martins
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O professor da PUC de São Paulo revelou o teor das pesquisas do Ibope escondidas por quatro décadas. Foto: Nicole Pressotto |
Na célebre obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx observa que os grandes
acontecimentos históricos costumam ocorrer duas vezes, a primeira vez
como tragédia, a segunda como farsa. Ao menos em parte, o historiador
Luiz Antonio Dias, professor da PUC de São Paulo, confia na validade do
vaticínio, embora considere certas farsas piores do que as tragédias
originais.
Em 2013, durante uma entrevista a CartaCapital,
Dias apresentou em primeira mão os resultados de um desmitificador
estudo sobre o período pré-1964. Com base em pesquisas feitas pelo Ibope
às vésperas do golpe, mas não divulgadas à época, demonstrou que o
presidente deposto João Goulart não apenas tinha amplo apoio popular
como grandes chances de vencer caso disputasse as eleições presidenciais
previstas para 1965. A versão consagrada pela mídia, de um líder fraco e
divorciado da opinião pública, não parava em pé.
Para o historiador, não há como ignorar as semelhanças com a atual conjuntura. Após o impeachment
de Dilma Rousseff, baseado no pretexto das “pedaladas fiscais”, o
favorito nas eleições deste ano está impedido de concorrer. Mesmo preso,
condenado sem provas, Lula segue na liderança das intenções de voto e
bate qualquer adversário no segundo turno.
Se em 1964 não havia como esconder a natureza do golpe, em 2016 a mídia tratou de lhe conferir um verniz de legalidade.
Dias acredita, porém, que a narrativa farsesca está em xeque e uma das
provas seria a manutenção do capital eleitoral de Lula, mesmo após toda a
ofensiva judicial e midiática contra o petista. “Por isso o incômodo
com os cursos sobre o golpe que pipocaram em todo o País e no exterior”,
emenda o historiador, que participou da criação de um desses programas
na Faculdade de Ciências Sociais da PUC.
CartaCapital: Por que a historiografia consagrou por tanto tempo a visão de Jango como um presidente sem apoio popular?
Luiz Antonio Dias: Dois
fatores ajudam a explicar. Em primeiro lugar, essas pesquisas pré-1964
não foram divulgadas à época. Permaneceram desconhecidas até o Ibope
doá-las, em 2003, para o Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp. Anos
depois, ao me debruçar sobre os documentos, verifiquei que Jango tinha
elevados índices de aprovação e grandes chances de vencer as eleições
presidenciais previstas para 1965. Havia uma dúvida se ele poderia ou
não se candidatar. A reeleição era vetada, mas ele não havia sido eleito
presidente, e sim vice de Jânio Quadros. Sem as pesquisas, prevaleceu a
visão da mídia. À exceção do Última Hora de Samuel Wainer, todos os
jornais de expressão nacional apoiaram o golpe.
CC: Que visão era essa?
LAD: A mídia apresentava Jango como um líder fraco e sem base popular. De fato, ele não tinha a mesma habilidade de Getúlio Vargas,
seu padrinho político, e chegou ao poder pelas circunstâncias do
período. Jânio Quadros elegeu-se presidente em coligação liderada pela
UDN, ao passo que Goulart venceu a disputa para vice pelo PTB. Eram
partidos rivais. Após a renúncia de Quadros, tornou-se refém daqueles
que impuseram um regime parlamentarista.
As pesquisas do Ibope desmontam, porém, a
tese de que era impopular. Uma das sondagens, contratada pela Federação
do Comércio de São Paulo, consultou 500 eleitores na capital paulista
de 20 a 30 de março de 1964. Jango era aprovado por 72% dos
entrevistados. Um levantamento nacional, sem indicação do contratante e
realizado entre 9 e 26 de março, demonstrou forte anuência da população a
medidas de seu governo. Nas oito capitais pesquisadas (3,4 mil
entrevistas), a maioria considerava necessária a reforma agrária. O
apoio variava de 61%, em Curitiba, a 82% no Rio de Janeiro.
CC: Por que essas pesquisas demoraram tanto para vir a público?
LAD: Algumas
delas talvez não tenham sido divulgadas à época por falta de tempo para
tabular os resultados. O golpe ocorreu dias após o trabalho de campo.
Sou tentado a acreditar, contudo, que levaram quatro décadas para vir a
público por contrariar interesses dos contratantes e da mídia. Entrei em
contato com representantes da Fecomércio, mas eles disseram não guardar
documentos do período.
CC: Em que medida o componente eleitoral contribuiu para o golpe?
LAD: O
golpe é o resultado de um processo iniciado em 1961, quando a direita
não aceitou a posse de Jango. No ano seguinte, houve forte articulação
para viabilizar candidaturas de oposição ao governo Goulart nas eleições
legislativas, inclusive com financiamento estrangeiro, fato denunciado
pelo então deputado Plínio de Arruda Sampaio. Em 1963, por meio de
plebiscito, Jango conseguiu derrubar o regime parlamentarista que lhe
foi imposto como condição para assumir o governo. Surgem, então, as
articulações pelo seu impeachment. No horizonte, despontava a ameaça de Jango disputar e vencer as eleições de 1965. Os militares entram nesse momento.
CC: Jango tinha chances de vencer o pleito?
LAD: Era o
favorito. Naquele mesmo levantamento nacional do Ibope, Juscelino
Kubitschek figurava na liderança da corrida presidencial apenas quando
Goulart não era listado como candidato. Quando se abria essa
possibilidade, o cenário era outro. Das oito capitais percorridas pelo
Ibope em março de 1964, Jango só tinha um porcentual de intenções de
voto inferior ao de JK em Fortaleza e Belo Horizonte. Em todas as
outras, liderava.
CC: O senhor vê semelhanças entre esse período e o atual?
LAD: A
história nunca se repete, ao menos não tal e qual foi no passado. Há,
porém, semelhanças entre os dois golpes. Ainda em 2014, houve forte
articulação da elite com de setores da mídia para evitar a reeleição de Dilma Rousseff. Uma semana antes da votação no segundo turno, a revista Veja
estampou Lula e Dilma na sua capa associados ao escândalo da Petrobras.
“Eles sabiam de tudo”, dizia a manchete. Era uma informação falsa, logo
contestada. Uma vez reeleita, Dilma perdeu o controle de sua base. O
Congresso atuou para desestabilizar seu governo, até aprovar um impeachment sem base legal, inspirado no pretexto das “pedaladas fiscais”.
Com a exceção de CartaCapital, a
mídia tradicional apoiou o golpe, e depois atuou para legitimar os
processos contra Lula. O ex-presidente era o favorito nas eleições deste
ano. Para os promotores do golpe, não faria sentido todo o esforço para
destituir Dilma se o PT voltasse ao poder. Ao menos em parte, os
governos petistas retardaram o avanço da agenda neoliberal, além de
promoverem a inclusão de uma parcela da sociedade com suas políticas
redistributivas.
CC: O vaticínio de Marx sobre a repetição de eventos históricos tem validade na atual conjuntura?
LAD: Talvez,
mas às vezes a farsa é pior do que a tragédia. Em 1964, não dava para
camuflar a natureza do golpe. Os militares tomaram o poder e
instituíram, com o apoio de setores da sociedade civil, uma ditadura que
perdurou 21 anos. Hoje, há um esforço para conferir um verniz de
legalidade ao golpe.
Recentemente, Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo, publicou um curioso texto para criticar os cursos universitários sobre o golpe de 2016 e defender a licitude do impeachment.
Ele reconhece que os antecessores de Dilma também praticaram pedaladas,
mas diz que as dela “foram em escala ao menos dez vezes maior” (nota
da redação: na verdade, Dilma atuou com excessivo rigor fiscal, como
demonstrou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo em depoimento no
Congresso. Para Belluzzo, foi o oposto: uma “despedalada”).
Até onde eu saiba, não importa se você rouba um banco ou um relógio, o crime é o mesmo. Devo estar errado (risos).
A questão é que a narrativa do golpe está avançando mais rapidamente e
de forma mais intensa, por isso o incômodo com os cursos sobre o golpe
que pipocaram em todo o País e no exterior.
CC: A manutenção do capital eleitoral de Lula é um sintoma disso?
LAD: Sem
dúvida. Em janeiro, Lula figurava com 37% das intenções de voto no
Datafolha. Em abril, após a sua prisão, seguia na liderança com 31%.
Como a margem de erro das duas pesquisas é de dois pontos porcentuais, a
oscilação foi pequena. No segundo turno, o ex-presidente continua a
bater qualquer adversário. A Folha de S.Paulo preferiu, porém,
estampar na manchete: “Preso, Lula perde votos; sem ele, Marina sobe e
alcança Bolsonaro”. Percebe a jogada? É preciso limar o petista, mas
também o Bolsonaro, um direitista radical que também não contempla os anseios da elite.
CC: Alguma aposta sobre o resultado das eleições?
LAD: Tenho
dificuldade de lançar previsões sobre o futuro, estou acostumado a
analisar o passado. Arrisco-me a dizer, porém, que a prisão de Lula não é
o último capítulo do golpe. Se não emplacarem um candidato alinhado com
a agenda neoliberal e mais palatável do que o Bolsonaro, não me
surpreenderia com outra virada de mesa.
Fonte: Publicado na Carta Capital
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