Por Fernando Brito
Na coluna de Elio Gaspari,
hoje, o recém-destronado da condição de “palavra final” sobre a
história da ditadura militar diz que o general Golbery do Couto e Silva,
eminência nem tão parda do regime, teria comentado sobre um documento
palaciano:
“Estamos sofrendo uma ditadura dos
órgãos de segurança. (…) toda vez que a cousa começa a acalmar o pessoal
decide e cria troço, prende gente. Porque, você compreende, é para
permanecer, para mostrar serviço. (…) A verdade é que eles fazem o que
querem.”
É quase impossível transplantar a frase para os dias de hoje,
substituindo-se o “órgãos de segurança” pelo bolo persecutório formado
pelo Ministério Público, pela Polícia Federal e por voluntariosos juízes
de primeira instância, à frente o juiz Sérgio Moro.
Como a “tigrada” militar, este núcleo age com a mais completa
convicção de impunidade com que a bandeira do “combate à corrupção” os
cobre, tal como a do “combate ao comunismo” dava sombra aos meirinhos
da ditadura.
Em ambos os casos, a “causa” dava justificativa “moral” para os
arreganhos de poder, as “cognições sumárias” de culpa e para a tortura,
certo que de modo “civilizado” ante os paus-de-arara do regime
ditatorial militar. Na ditadura judicial, substituiu-se-lhes pelas
“alongadas prisões de Curitiba”, que fazem brotar, como então,
confissões que, verdadeiras ou falsas, vão possibilitando tramar-se uma
teia até onde as desejem as aranhas.
À parte a imperdoável cumplicidade dos chefes do poder militar com
esta abjeção, vê-se claramente que os escalões inferiores na máquina
repressiva tomaram os freios dos dentes e levaram os seus superiores – a
alguns, “com gosto”, inclusive – a referendar obrigatoriamente o que
faziam.
Ou vê-se algo diferente no Supremo Tribunal Federal , onde, invariavelmente, legitimam-se os arreganhos de 1ª instância?
Gaspari diz que a intenção de “seletivizar” os assassinatos,
submetendo-os à autorização da cúpula formal do regime frustrou-se
porque, acostumados ao gosto de carne humana, os tigres não se
contentavam em devorar apenas o que lhes fosse autorizado.
Também aqui é notória a dificuldade de livrar deste apetite os que
não são “subversivos perigosos”, mas apenas e sempre comedores de
migalha do poder empresarial. Quer-se comer também os cachorros e a
carne tucana resta como a única que inapetece às feras.
A advertência que o episódio da revelação da chancela presidencial às
execuções do regime militar, para Gaspari dirigida, “as vivandeiras [de
quartéis] e napoleões de hospício de hoje” deveria dirigir-se ao
cardinalato de toga: “na ditadura praticaram-se crimes, e aquilo que
pretendia ser ordem era uma enorme bagunça”.
A tigrada está aí, solta e com apetite insaciável, sob o olhar assustado dos que achavam que poderiam ser seus domadores.
A CIA achou que Geisel dominaria a ‘tigrada’
Elio Gaspari, na Folha
A história do Brasil continua a ser
escrita pelos americanos. O documento da CIA que revelou o encontro do
presidente Ernesto Geisel com três generais para discutir critérios para
os assassinatos de dissidentes políticos avacalha os 40 anos de
política de silêncio que os comandante militares cultivam em relação às
práticas da “tigrada” dirigida pelo Centro de Informações do Exército, o
CIE.
O documento mandado pelo diretor da
CIA ao secretário de Estado Henry Kissinger revelou que, duas semanas
depois de sua posse, Geisel fez uma reunião com o chefe do Serviço
Nacional de Informações, João Baptista Figueiredo, e os generais Milton
Tavares de Souza, comandante do CIE, e seu sucessor, Confúcio Avelino.
Tavares de Souza, o “Miltinho”, era um asceta, radical, porém
disciplinado. Confúcio, um medíocre.
Na reunião, “Miltinho” revelou que já
haviam sido executadas 104 pessoas. Segundo a narrativa da CIA, a
matança ficaria restrita aos “subversivos perigosos” e cada proposta de
execução deveria ser levada ao general Figueiredo, para que ele a
referendasse. Esse projeto de controle do Planalto sobre o CIE ficou na
teoria, ou na imaginação da CIA.
No dia 11 de abril, quando o
telegrama foi transmitido a Washington, circulava no Planalto um
documento desconhecido, do qual sabe-se apenas a reação do general
Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel: “Estamos
sofrendo uma ditadura dos órgãos de segurança. (…) toda vez que a cousa
começa a acalmar o pessoal decide e cria troço, prende gente. Porque,
você compreende, é para permanecer, para mostrar serviço. (…) A verdade é
que eles fazem o que querem.”
Depois de abril, pelo menos 15
guerrilheiros do Araguaia foram mortos, e tanto Geisel como Figueiredo,
“Miltinho”, Confúcio e Golbery sabiam que essa matança estava em curso
desde outubro de 1973. (Executavam-se inclusive os jovens que atendiam
ao convite de rendição e colaboravam com a tropa.)
Em janeiro de 1974, Geisel ouviu de
um oficial do CIE uma narrativa das operações no Araguaia, onde haviam
sido capturados 30 guerrilheiros. Geisel perguntou: “E esses 30, o que
eles fizeram, liquidaram?” Resposta do tenente-coronel: “Alguns na
própria ação. E outros presos depois. Não tem jeito, não.”
Semanas depois, ao convidar o general
Dale Coutinho para o Ministério do Exército, ouviu dele que “o negócio
melhorou muito, agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós
começamos a matar. Começamos a matar.” Geisel respondeu: “Esse negócio
de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”
A metodologia narrada pelo serviço
americano foi seguida no extermínio da direção do Partido Comunista
Brasileiro. Antes de 1974 os comunistas eram perseguidos ou presos, mas
não eram assassinados. Em abril, três dirigentes comunistas haviam sido
capturados e mortos pelo CIE. No ano seguinte, outros sete.
Com a destruição das siglas metidas
em terrorismo, o CIE neutralizou a única organização esquerdista que
agia na esfera política. Para isso, dispunha de pelo menos uma preciosa
infiltração e conhecem-se casos de tentativas de recrutamento, pela CIA,
de capas-pretas que viviam na clandestinidade.
À falta de dirigentes, em 1975 a
“tigrada” continuou matando militantes em sessões de tortura. A ideia de
controlar o CIE colocando-o sob a supervisão do Planalto simplesmente
não funcionou.
Em 1976, depois da morte do operário
Manoel Fiel Filho no DOI de São Paulo, Geisel demitiu o comandante do 2º
Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, e defenestrou Confúcio. Mesmo
assim, só restabeleceu o primado da Presidência sobre as Forças Armadas
em 1977, quando mandou embora o ministro do Exército, Sylvio Frota. (No
dia da demissão de Frota, doidivanas do CIE pensaram em atacar o Palácio
do Planalto.)
Para as vivandeiras e napoleões de
hospício de hoje, o documento da CIA ensina que na ditadura
praticaram-se crimes, e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme
bagunça.
Fonte: Publicado no Tijolaço
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