'Em 2016, "óbitos evitáveis" de crianças de um a cinco anos de idade
aumentou em 11%. "A retirada de programas específicos impacta no aumento
da mortalidade", afirma gerente-executiva da Fundação Abrinq'
Por Luciano Velleda
São Paulo – Um enorme esforço do governo federal e da sociedade civil
durante 15 anos para diminuir as taxas de mortalidade de bebês e
crianças começa agora a ser desfeito, às custas do argumento do ajuste
fiscal promovido pelo governo de Michel Temer. Depois de mais de uma
década com quedas consecutivas, a taxa de mortalidade na infância
(proporção de óbitos de menores de cinco anos para cada mil nascidos
vivos) subiu 11% em 2016, em comparação com o ano anterior.
Os dados foram tabulados pela Fundação Abrinq,
a partir de informações do Ministério da Saúde/DataSUS, IBGE e outras
fontes oficiais. Seguindo as metas dos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ODS) definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), a
mortalidade na infância caiu de 30,1/para cada mil nascidos vivos, no
ano 2000, para 14,3, em 2015.
"O enfrentamento foi significativo e o Brasil se tornou referência.
As taxas vinham decrescendo, com exceção à mortalidade materna, com
taxas ainda distantes (em relação aos ODS). A partir de 2015 há um
declínio nas taxas de redução e, em 2016, uma tendência de crescimento,
uma sinalização concreta de que estamos quebrando esse padrão de
declínio com a perspectiva de aumento", diz a gerente-executiva da
Fundação Abrinq, Denise Cesário.
Ela explica que o Brasil tem uma série de programas específicos para
enfrentar a mortalidade na infância, e que o aumento agora constatado
está relacionado aos cortes nos programas sociais feitos pelo governo
Temer, aliado ao não prosseguimento de outras ações que se relacionam
com o bem-estar da criança. Entre os programas que sofreram cortes,
Denise Cesário destaca o Rede Cegonha, o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (Pnae) – que garante acesso à alimentação saudável
de crianças pobres na pré-escola –, o Mais Médicos, o Bolsa Família, e a
situação de quase extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
"A gente percebe que a redução do investimento e a retirada de
programas específicos, acaba impactando no aumento da mortalidade
infantil e da mortalidade na infância", afirma a gerente-executiva da
Fundação Abrinq. "Isso indica que as famílias mais pobres são aquelas
mais impactadas com a falta de investimentos em políticas sociais.
Percebemos rapidamente o impacto destes indicadores em quem precisa do
serviço básico de saúde, em quem precisa de uma série de programas e
suporte para alimentação."
Denise Cesário explica que tais mortes estão relacionadas com
cuidados no pré-natal, com a gestante e o bebê após o nascimento,
destacando que os primeiros mil dias de vida (cerca de três anos) são
considerados vitais para o desenvolvimento da criança. Entre os cuidados
fundamentais está o próprio momento do parto, que deve ser de
preferência normal, o período do aleitamento materno de no mínimo seis
meses, o início da alimentação e a atenção ao calendário de vacinas.
Após grande esforço, desde o ano 2000 as taxas de mortalidade vinham caindo |
"Precisamos estar atentos até os cinco anos (de idade) para que não
ocorra a mortalidade na infância. Se tivermos toda essa atenção, vamos
garantir o desenvolvimento", afirma. A gerente-executiva da Fundação
Abrinq pondera que os dados de 2016 mostram um pequeno declínio na taxa
de óbito até um mês de vida. O aumento dos "óbitos evitáveis" (aqueles
que poderiam mais facilmente não acontecer) acontece em bebês de um mês
até um ano de vida (mortalidade infantil), e entre um e cinco anos de
idade (mortalidade na infância).
Entre os óbitos evitáveis, Denise Cesário cita o retorno de problemas
que já haviam sido bem enfrentados pelo governo federal, como as mortes
causadas por questões gastrointestinais, como diarreia, algo muitas
vezes ligado ao saneamento básico e a qualidade da água usada para
consumo humano.
A gerente-executiva da Fundação Abrinq ainda enfatiza os efeitos
nocivos da Emenda Constitucional 95, que congela por 20 anos o orçamento
do governo federal. "Tem impacto considerável, são questões bastante
preocupantes. Sabemos que na crise o primeiro corte é na área social e
quem mais sofre é a população mais vulnerável", afirma.
Austeridade fiscal
As escolhas políticas de Temer para enfrentar a crise econômica do país são duramente criticadas por Tereza Campello, economista e ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo de Dilma Rousseff.
Sem meias palavras, ela define como "burra" a opção de cortar o
investimento social no curto prazo e não levar em conta, a médio e longo
prazo, o aumento do gasto na rede pública de saúde. "Custa menos você
prevenir a desnutrição e a diarreia, do que tratar uma criança
hospitalizada num leito de UTI. Então não é uma opção fiscal
inteligente, racional, é ineficaz do ponto de vista da austeridade
fiscal", afirma Tereza Campello.
Enquanto cortava nos programas sociais, a ex-ministra lembra que o
governo Temer privilegiou o parcelamento e descontos de até 90% para
micro e pequenos empresários em dívida com a União, por meio do Programa
Especial de Regularização Tributária das Microempresas e Empresas de
Pequeno Porte (Refis). Escolha semelhante também foi feita com relação
às dívidas de fazendeiros, atendendo demanda da bancada ruralista em
detrimento do investimento em programas sociais. "Além de uma grande
injustiça, é uma burrice fiscal", critica a ex-ministra.
Tereza diz que o país hoje assiste a volta de doenças que estavam
controladas, como sarampo, sífilis, tuberculose e hanseníase. "O Brasil
era pioneiro na redução de doenças como tuberculose e hanseníase, que
agora voltam a crescer junto com a mortalidade infantil." Ela vincula o
retorno da diarreia e da desnutrição à renda da população, além de
relacionar o aumento de doenças respiratórias com o fim da Farmácia
Popular.
"É um escândalo. Fecharam a Farmácia Popular, que distribuía de graça
remédio pra asma! Isto vai ter impacto nas doenças respiratórias, como
pneumonia e infectorespiratórias. Então essa família pobre, precarizada
com o desemprego, precarizada com a reforma trabalhista, fica sem o
remédio da asma. Você acaba com a Farmácia Popular e agora vai aumentar a
hospitalização de criança com pneumonia. O impacto a médio e longo
prazo é muito alto. Mesmo do ponto de vista fiscal, essa escolha é
burra", critica a economista.
Os óbitos evitáveis também aumentaram nos bebês de até um ano de vida |
Conhecer os acertos
A ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome propõe que, neste momento de crescimento da mortalidade na infância, se reflita sobre os motivos pelos quais tais mortes vinham diminuindo na última década, de forma permanente e sistemática. Neste sentido, avalia que a principal razão não havia sido apenas a expansão da rede de cuidados médicos, mas sim o aumento da renda da população, com impacto direto na redução da mortalidade causada por doenças evitáveis, como desnutrição, e outras decorrentes da diminuição da imunidade, como diarreia.
"O aumento da crise e do desemprego tinha que ser acompanhado do
aumento da rede de proteção, e isto não aconteceu. Este é o problema",
analisa. Segundo Tereza Campello, não basta justificar os cortes sociais
como efeitos da crise. Para ela, o governo de Michel Temer abandonou a
rede de proteção que daria apoio durante a dificuldade econômica. "É
justamente no momento de crise que o Estado deve dar suporte, deve
garantir a alimentação escolar melhor, já que ela não vai comer em
casa", avalia, fazendo referência aos cortes no Pnae) e o "fim" do PAA.
"O que ficou do PAA são coisas que tinham obrigações geradas e
ficaram sendo pagas. O programa chegou a ter um bilhão de reais e hoje
tem alguns poucos milhões, foi completamente desconstituído, e era um
programa que distribuía alimentos para populações vulneráveis. Há um
conjunto de políticas que deixou de garantir o suporte para o aumento do
desemprego e o aumento da vulnerabilidade da população", afirma a
ex-ministra, em sintonia com o diagnóstico da gerente-executiva da
Fundação Abrinq.
"O estancamento do processo de suporte da população mais vulnerável,
mais a precarização do trabalho, mais o aumento do desemprego, isto
impacta diretamente no público mais frágil, que são as crianças. A gente
já sabia que a pobreza no Brasil era mais severa entre as crianças, por
isso tínhamos todo um conjunto de políticas protegendo as crianças, e
que deixou de existir", lamenta Tereza Campello.
Apesar da revolta com o aumento das taxas de mortalidade infantil e na
infância, a ex-ministra pondera que o país hoje conhece os caminhos para
enfrentar o problema, uma experiência acumulada na gestão pública, em
parceria com a sociedade civil, ao longo de muitos anos. Com otimismo,
ela acredita que, quando houver um ambiente político mais favorável, o
Brasil poderá retomar o caminho das políticas para crianças que vinham
sendo desenvolvidas até o impeachment de Dilma Rousseff.
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