Por Eugênio Aragão
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Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça e procurador federal aposentado. |
Certa feita uma
amiga diplomata foi deslocada a serviço a Kinshasa, na época capital da
República do Zaire, governado por Mobutu Sese Seko.
Na fila do
passaporte, pôde observar uma cena digna de uma peça de teatro de Eugène
Ionesco. Um senhor bem apessoado exibiu o passaporte ao funcionário da
imigração. Este, após examiná-lo superficialmente, advertiu: “Senhor, lamento,
mas está sem visto!” O dono do passaporte retrucou: “Como não? Claro que tenho
visto! Olhe só…”
E tentou lhe
tomar o documento para mostrar que tinha o tal visto de entrada. O funcionário,
num gesto brusco, impediu o senhor de ver o passaporte. “Não! O senhor está sem
visto!” E começava uma discussão sobre existir ou não existir o visto.
Quem assistia à
cena logo via que tinha algo de errado, tamanha a convicção de cada um em
defender seu ponto de vista, até que o funcionário deu a entender, com seus
dedos em pinça numa página do passaporte, que ia rasgá-la.
Para prevenir o
descalabro, outro imigrante, mais atrás na fila, certamente com maior
experiência na cultura local, gritou: “coloque 100 dólares no passaporte!” Sem
pestanejar, o dono do documento tirou o dinheiro da carteira e pediu ao
funcionário para retornar-lhe o passaporte. Este, com um sorriso gentil,
atendeu-lhe o pedido e o devolveu intacto.
O senhor
enfatiotado encartou a nota no passaporte e voltou a exibi-lo ao funcionário
que prontamente exclamou, olhando nos olhos do estrangeiro: “Oh… não reparei.
Claro! O senhor tem visto!” E, embolsado o dinheiro e carimbado o passaporte,
desejou-lhe: “Bem-vindo! Tenha uma boa estada no Zaire!”
Por que conto
isto? Porque a situação do Presidente Lula na cadeia da Superintendência
Regional da Polícia Federal em Curitiba é muito parecida com a do desavisado
viajante no aeroporto de Kinshasa.
Todos sabem-no
inocente, mas os representantes do Estado fingem que é culpado, como se à
espera de algo. Sabem perfeitamente que não houve crime algum relacionado ao
tal triplex do Guarujá, mas, à semelhança do funcionário congolês aguardando o
encarte dos 100 dólares no passaporte, aguardam que Lula diga não ser
candidato, para exclamarem: “Não reparamos! Claro! Não houve crime nenhum!” E
prontamente lhe desejarão tudo de bom na liberdade reconquistada, como se não
houvesse nada de mais. Business as usual.
A liberdade de
Lula está precificada. O golpe tem sua lógica que se expressa na expectativa do
ganho. Para atingir seus objetivos, golpistas – representantes da justiça de
classe sem vontade de retornar à experiência da inclusão social em massa –
insistem convictos que nada mais pode ser feito para livrar Lula do
cativeiro.
Não vem ao caso
se ele é culpado ou não. O que importa é que foi acusado e, depois de formal
instrução, foi condenado, com a sentença confirmada e agravada na segunda
instância por unanimidade. Isso por si basta para encostá-lo na parede e
submetê-lo a uma verdadeira escolha de Sofia: ou deixa de ser candidato
(danem-se as massas excluídas), ou fica preso com coonestação das escancaradas
lambanças do primeiro e do segundo grau de jurisdição.
Tal qual o
funcionário congolês, nossos juízes superiores e supremos sabem – está na cara
– que Moro e os três sobrinhos do Pato Donald no TRF da 4ª Região (assim
denominados por Luís Nassif) fizeram um processo que mais parece escárnio,
caricatura de justiça, do que regular persecução penal. Não o negam nos
cochichos entre si e alguns até o expressam com indignação, mesmo sem dar nome
aos bois… Moro está hoje muito longe dos aplausos da unanimidade da direita
política e judicial!
Há exceções à
silenciosa e conspirativa crítica. Há outros magistrados que, ao julgarem o
habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, disseram com todas as letras que
prendê-lo agora seria gritante violação do princípio de presunção de inocência.
Deixaram claro
que tornar definitivo o efeito punitivo de uma decisão de segundo grau, mesmo
com pendência de recursos, seria fechar os olhos para “eventuais” ilegalidades
praticadas contra o réu e ainda sujeitas à revisão jurisdicional. Gritaram.
Espernearam. Acusaram a trapaça de se pautar o habeas corpus antes de se
definir, em julgamento abstrato, a extensão da presunção de não-culpabilidade.
Mas perderam por 6 a 5.
Depois,
calaram. Constataram o golpe, reconheceram a “estratégia” e nada mais pretendem
fazer. Sim, o funcionário da imigração congolesa barrou um estrangeiro com
visto no passaporte com a alegação da falta do visto. E daí? No fundo, parece,
todos esperam pelo encarte da nota de 100 dólares no passaporte. E se Lula não
a encartar – fazer o quê? – não entrará no Zaire! A opção é dele. Se topar o
jogo, tudo ficará bem!
Na semana
passada o STF rejeitou com unanimidade em julgamento virtual uma reclamação
contra a pressa do TRF4 em recolher Lula ao cárcere, em clara transgressão dos
limites do permissível na chamada execução provisória da pena.
Dos cinco
magistrados partícipes da sessão eletrônica, quatro haviam se posicionado,
antes, pela concessão da ordem ao ex-presidente por entenderem que adiantar a
pena violaria flagrantemente o art. 5°, inciso LVII da Constituição. Foram
então muito fortes em seus argumentos, denotando certeza sobre o absurdo que se
praticava contra o réu-paciente.
A certeza se
converteu em resignação. A convicção ficou para a integridade corporativa.
Mesmo conscientes do injusto que se praticava contra Lula, a parceria com os
colegas da imigração congolesa lhes pareceu mais importante do que a defesa da
constituição e da liberdade de um inocente.
Em nome de um
tal princípio de colegialidade – a cordialidade entre os agentes imigratórios –
jogaram para o alto suas certezas e preferiram a convicção de que Lula,
enquanto for candidato, continuará presumidamente culpado. O preço está posto.
E estão
errados? Afinal, parte da esquerda, que se diz pragmática, “pé no chão”, já
parece estar jogando a toalha, ao achar que largar Lula à sua própria sorte e
fazer conchavo com outros pretendentes à presidência, mesmo que longe de terem
o compromisso do réu injustiçado com a democracia e os excluídos, é mais
vantajoso para permitir que o espetáculo circense de nossa política
continue…
“Não deixarão
mesmo que ele se candidate…” E essa esquerda se resigna como os magistrados com
suas certezas. O preço é, de fato, a candidatura de Lula, e há quem queira
pagá-lo. O prêmio será poder entrar no Zaire de Mobutu Sese Seko – na selva.
Na perplexidade
do momento, pergunto-me: Afinal, é isso mesmo que a esquerda resignada deseja?
É possível ser de esquerda e querer entrar no Zaire de Mobutu? Ou, em termos
menos polarizadores: é possível ser democrata e querer entrar no Zaire de
Mobutu?
Podem
democratas resignar-se? Podem democratas coonestar a condenação de Lula? Será
que os democratas querem entrar cada vez mais na selva? Será que eles querem mesmo
a lei da selva, cujo guardião hoje é o STF?
Se e quando
souberem responder, senhores de “pés no chão”, avisem a este nefelibatas.
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