País tem 2
milhões de menores exercendo atividades muitas vezes degradantes e que lhes
negam direitos garantidos por lei. Realidade está essencialmente ligada à
pobreza e à herança escravocrata, dizem especialistas.
Por Karina Gomes
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Trabalho infantil gera evasão escolar e afasta as crianças do lazer e do descanso, direitos garantidos por lei |
Mais de 2
milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham em todo o país.
Mas chega a 20 milhões o número daqueles que exercem, em casa, afazeres
domésticos ou cuidados de pessoas, o que representa mais da metade das crianças
brasileiras.
Muitos dos
menores ocupados trabalham em atividades perigosas que podem levar a acidentes
graves e até à morte. Além disso, o trabalho infantil provoca evasão escolar e
afasta as crianças do lazer e do descanso, direitos garantidos pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), que completa 29 anos neste sábado (13/07).
A realidade do
trabalho infantil no Brasil revela, assim, uma experiência sensivelmente
antagônica à descrita pelo presidente Jair Bolsonaro em declarações recentes.
Em transmissão ao vivo pelo Facebook, ele afirmou que não foi "prejudicado
em nada" por ter trabalhado "com nove, dez anos na fazenda".
"O trabalho não atrapalha a vida de ninguém", acrescentou.
Outros políticos
se manifestaram sobre suas próprias experiências, como a deputada federal Bia
Kicis (PSL-DF). No Twitter, ela escreveu: "Aos 12 anos de idade, eu fazia
brigadeiros para vender na minha escola. E o mais interessante era que eu não
precisava, mas eu sentia uma enorme satisfação de pagar as minhas aulas de
tênis com esse dinheiro. Eu me sentia criativa e produtiva."
M.N.J., hoje com
11 anos, não pode dizer o mesmo sobre as tarefas domésticas forçadas que
executou a mando da mãe e do padrasto, que estão presos desde 2016 após terem
sido condenados por tortura, lesão corporal e redução à condição análoga à
escravidão.
A menina, então
com 9 anos, era obrigada a limpar a casa, cozinhar e cuidar dos irmãos mais
novos, sem direito à comida ou cama para dormir. Frequentemente tinha os pés e
mãos amarrados para que dormisse em pé. Em certa ocasião, a mãe cortou sua
língua e depois a costurou com linha e agulha, forçando a criança a limpar o
próprio sangue. A menina ainda foi proibida de frequentar a escola para que
ninguém visse as marcas da tortura.
"É um caso
que exemplifica a barbárie que pode se configurar em casos de trabalho infantil
e que não podem ser romantizados e tratados como algo positivo", alerta o
advogado Ariel Castro Alves, conselheiro do Conselho Estadual de Direitos da
Pessoa Humana de São Paulo (Condepe) e ex-conselheiro do Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
"Alguns
enaltecem o trabalho infantil dizendo que trabalharam com os pais no comércio,
na empresa ou no escritório da família, mas foi certamente em situações que não
as privaram dos estudos, de cursos, do lazer e de brincadeiras", diz
Alves. "É muito diferente das crianças que são exploradas nas ruas, nas
carvoarias, na colheita de cana-de-açúcar, em marcenarias, entre outras
situações, sendo sujeitas a acidentes que geram até mortes."
O que é trabalho
infantil
A Organização
Internacional do Trabalho (OIT) descreve trabalho infantil como "causa e
efeito da pobreza e da ausência de oportunidades para desenvolver
capacidades", impedindo as crianças de frequentar a escola regularmente ou
forçando-as a abandoná-la de forma prematura. É o tipo de trabalho "que
priva as crianças de sua infância, seu potencial e sua dignidade, e que é
prejudicial ao seu desenvolvimento físico e mental".
Duas convenções
da OIT ratificadas pelo Brasil descrevem as chamadas "piores formas de
trabalho infantil", que incluem a escravidão, o tráfico de pessoas, o
trabalho forçado, a exploração sexual, o tráfico de drogas e o envolvimento da
criança em conflitos armados. No Brasil, o trabalho infantil doméstico se
enquadra nessa categoria.
A Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, ratificada por
todas as nações do mundo, com exceção dos Estados Unidos, estabelece que cada
país deve reconhecer "o direito da criança de ser protegida contra a
exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa ser
perigoso ou interferir em sua educação" (artigo 32).
No Brasil, a
Constituição de 1988 passou a garantir a proteção integral da criança e do
adolescente, colocando-os "a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (artigo 227).
Segundo a Carta
Magna, cabe à família, ao Estado e à sociedade assegurar os direitos de
crianças e adolescentes. O texto estabelece que qualquer tipo de trabalho é
proibido para menores de 16 anos de idade, com exceção da condição de aprendiz,
e garante que ninguém com menos de 18 anos poderá exercer "trabalho
noturno, perigoso ou insalubre".
Segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os menores têm direito à educação,
saúde, integridade física e psicológica, lazer, esportes e cultura, ficando
protegidos de exploração, crueldade e opressão.
As condições de
atuação profissional entre os 14 e 17 anos estão definidas na Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT). Para trabalhar como aprendizes, adolescentes precisam
receber formação técnico-profissional adequada com garantia de acesso ao ensino
fundamental e horário especial para a execução das atividades de forma a
assegurar a frequência à escola. Segundo o ECA, aprendizes têm seus direitos
trabalhistas e previdenciários garantidos.
Situação atual
no Brasil
As informações
mais abrangentes sobre trabalho infantil no Brasil são da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
Segundo dados de
2015, 2,7 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham em
todo o país, sendo 59% deles meninos. Isso pode indicar uma subnotificação do
trabalho infantil entre meninas. Elas representam a imensa maioria nos casos de
trabalho infantil doméstico (94%, segundo a Pnad 2015).
A Pnad 2016
mostra que o trabalho infantil doméstico atinge cinco em cada dez crianças ou
adolescentes dos cinco aos 17 anos. Entre os mais velhos, de 14 a 17 anos, a
principal atividade é o comércio e serviços de reparação, como serviços
mecânicos.
A maior parte
dos casos de trabalho infantil está concentrada no Sudeste (854 mil) e Nordeste
(852 mil). Em todo o mundo, são 152 milhões de crianças e adolescentes nessa
situação, de acordo com um relatório global da OIT.
"A cara do
trabalho infantil no Brasil reflete as desigualdades regionais e varia conforme
a região, as atividades econômicas de cada estado, a faixa etária e recortes
raciais e de gênero. Norte e Nordeste concentram a situação de trabalho
infantil no meio rural, também muito presente no Rio Grande do Sul",
afirma Felipe Tau, gestor do projeto Rede Peteca - Chega de Trabalho Infantil,
da Cidade Escola Aprendiz.
Tau explica que,
entre as crianças, predomina o trabalho no campo, normalmente na agricultura
familiar; entre os adolescentes, predomina o trabalho em meio urbano,
especialmente no setor de comércio e serviços. "Vale destacar também que
atividades de difícil identificação, como o trabalho doméstico, o trabalho no
tráfico e a exploração sexual, são muito comuns e preocupantes."
Em 2017, o IBGE
apresentou dados atualizados com base em uma nova metodologia da Pnad que
excluiu o número de crianças e adolescentes trabalhando em atividades
permitidas pela legislação para o sustento próprio. Segundo especialistas, o
novo número apresentado, de 1,8 milhão de crianças e adolescentes em situação
de trabalho infantil, mascara a realidade.
Incluindo a
categoria "produção para o próprio consumo", 2,3 milhões de crianças
e adolescentes estavam no mercado de trabalho, segundo a Pnad 2016, o que
representa uma taxa de trabalho infantil de 5,96%. No entanto, não é possível
dizer que houve uma redução em relação a 2015 (2,7 milhões), porque o
rompimento da série histórica com a alteração de metodologia impossibilita a
comparação com anos anteriores. A OIT ainda usa dados da Pnad 2015
como referência.
Raiz na pobreza
O trabalho
infantil está essencialmente ligado à pobreza, explica Felipe Tau. "Um
traço comum é que ele acomete os mais pobres e cujos pais têm menos
escolaridade, perpetuando nas famílias brasileiras um ciclo de pobreza. Embora
possa representar renda significativa para famílias durante curto período,
acaba trazendo como consequência, além da violação dos direitos das crianças e
adolescentes, um comprometimento muito sério em seu desenvolvimento: emocional,
físico e intelectual", afirma.
Além de ser um
fator de risco para acidentes, o trabalho infantil está fortemente associado à
evasão escolar, "levando a criança e o adolescente a se colocar de maneira
precária no mercado quando adulto: na informalidade, no subemprego e em postos
de baixa remuneração", acrescenta Tau.
A procuradora do
Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP) Elisiane dos Santos
explica que a herança escravocrata da história brasileira se perpetua
"tanto em relação à naturalização do trabalho infantil quanto em relação
aos dados da realidade".
"A maior
parte do trabalho nas ruas é feito por meninos negros e, no trabalho doméstico,
as meninas negras são as mais afetadas. Falamos de 70% desse trabalho infantil.
Isso significa dizer que o não acesso da população negra à educação e ao
trabalho digno se perpetua até os dias de hoje e atinge fortemente as crianças
e adolescentes", observa.
"Isso traz
estigmas e efeitos perversos, fazendo com que a sociedade veja como algo normal
e até defenda o trabalho infantil (das crianças pobres e negras), quando
deveria estar lutando por educação de qualidade para todos, acesso à
universidade e igualdade de oportunidades no trabalho", complementa.
O menino Ítalo,
de 10 anos, que trabalhava como engraxate no Aeroporto de Congonhas, em São
Paulo, teve sua trajetória interrompida. Ele passou ao menos seis vezes pelos
conselhos tutelares de São Paulo por situações de abandono e trabalho infantil,
conta o advogado Ariel Castro Alves.
No
"trabalho", ele conheceu outra criança, um menino de 11 anos, com
quem furtou um veículo num condomínio no bairro do Morumbi. Durante a
perseguição policial, ele foi morto com um tiro na cabeça, em 2016.
"Já conheci
muitas adolescentes que começaram trabalhando nas ruas vendendo balas ou
pedindo em faróis e que foram atraídas depois para a exploração sexual
infantil. E muitos meninos que começaram trabalhando nas ruas e acabaram
aliciados para o tráfico de drogas ou para a prática de outros crimes",
pontua Alves.
"A maior
autoridade do país desconhece ou despreza essa realidade. Ao defender o
trabalho infantil, Bolsonaro também está defendendo a exploração de crianças e
adolescentes no tráfico de drogas e a exploração sexual infantil, que são
algumas das piores e mais perversas formas de trabalho infantil. Chegamos aos
29 anos do ECA com um processo de desmonte do sistema de proteção criado pela
lei."
Fonte: Publicado na Deutsche Welle
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