Por Leomar
Daroncho* / Bruna
Bonfante*
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(FOTO: MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL) |
Governo anuncia a intenção de reduzir em
até 90% as Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança do Trabalho (NRs). É um
absurdo
Chico Buarque, o aclamado ícone da
música brasileira, recebeu o prêmio Camões 2019, um dos maiores reconhecimentos
da literatura em língua portuguesa. Com composições de aguda crítica social e
fina ironia, o cancioneiro dá voz aos desvalidos sociais, ao operário, à
prostituta e à gente humilde em canções de reconhecida sofisticação melódica.
Em Construção, a rotina do operário
da construção civil que morre em serviço tem o óbito retratado como um
empecilho que atrapalha o sábado. Tal como em Pedro Pedreiro, os versos
cantam o processo de alienação do sujeito invisibilizado e desesperançado, que
se arrisca mal remuneradamente nos andaimes pingentes da vida, “como se fosse
máquina”.
Pedro e o operário da construção, talvez
a mesma pessoa, simbolizam, ainda hoje, a realidade de muitos trabalhadores
brasileiros, submetidos a baixos salários e a condições precárias e inseguras
de trabalho pela necessidade de sobreviver.
Tal como nos versos de Chico, não são
poucos os trabalhadores que caem como “pacotes flácidos” de canteiros de obras
brasileiros, em tristes estatísticas que revelam o quanto temos falhado em
garantir dignidade e um meio ambiente de trabalho minimamente seguro aos
trabalhadores.
A despeito dos intensos esforços da
minguada da equipe de profissionais que se dedica a isso, o Brasil ainda
ostenta índices altíssimos de adoecimentos e acidentes no trabalho. Somos o 4º
país do mundo no ranking de acidentes de trabalho, e andamos com dificuldades
neste mapa estatístico. De 2012 a 2018, conforme dados do Observatório Digital
de Saúde e Segurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho, foram mais
de 4,7 milhões de acidentes de trabalho, sendo 17.315 com óbito, uma média de
um acidente de trabalho a cada 49 segundos. Fora os casos não notificados.
Sem complexo de vira-latas, mas apenas
com o necessário exercício de autocrítica, parte desse fenômeno pode ser
explicada pelo fato de que o Brasil não incorporou a cultura do respeito às
normas de saúde e segurança no trabalho. De fato, não podemos negligenciar uma
forte tendência de burlar e lucrar com o não cumprimento das regras de
segurança.
É o jeitinho brasileiro em sua conotação
mais negativa.
A conhecida resistência à adoção de
medidas de segurança é uma das razões pelas quais a norma referente a máquinas
e equipamentos, a NR 12, tão combatida por setores do empresariado, é minuciosa
e rigorosa. A “criatividade”, os improvisos e as “gambiarras”, adotadas em nome
da redução de custos ignoram soluções efetivas de gestão de riscos, barateando
a vida dos trabalhadores sujeitos a perigos evitáveis. Seguimos, pela lei do
menor esforço, engrossando as estatísticas dos desvalidos no trabalho e
agravando as contas da Previdência Social.
É nesse quadro que o governo anuncia a
intenção de reduzir em até 90% as Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança
do Trabalho (NRs). Alega que pretende “modernizar” as relações de trabalho.
É certo que a profusão de regras não é
capaz, por si, de assegurar um meio ambiente de trabalho seguro. Porém, é fora
de dúvidas que a desregulamentação proposta tende a agravar, ainda mais, o
trágico cenário.
A criação das Normas Regulamentadoras é
um exemplo bem-sucedido de exercício do tripartismo, diálogo social exigido
pela lei para a criação das normas, num espaço paritário de formação de
consenso que efetivamente ouve e considera representantes dos empregadores, dos
trabalhadores e do Governo.
As NRs comportam aprimoramentos, no
espaço próprio, com múltiplos olhares. Porém, não se trata de perfumaria
jurídica a ser “enxugada”. As NRs são essenciais instrumentos de humanização do
trabalho e de preservação da vida humana, que andam junto com os postulados
humanizantes da Constituição brasileira.
O trabalho, afinal, é exercido por seres
humanos, “Pedros” de carne e osso, cuja integridade física nem sempre resiste à
negligência com as medidas de proteção. São muitos os casos de mortes por
quedas em obras sem os cuidados da NR35; de trabalhadores que têm mãos
amputadas em máquinas de cortar ou moer sem a proteção da NR12; de operários
soterrados em silos, sem equipamentos exigidos pela NR33; de trabalhadores queimados
em caldeiras que ignoraram a NR13; de perda da mobilidade dos braços de
trabalhadoras de frigoríficos, por desrespeito à NR17 e à NR36.
A tragédia trabalhista cotidiana é muito
maior do que o número de mortos que nos choca na barragem da Vale.
É equivocado imaginar que a afoita
iniciativa de eliminação de normas mínimas de segurança, sem qualquer base no
mundo real e sem o necessário e aprofundado diálogo social, traga algum ganho
para as relações de trabalho ou para a sociedade.
Nem por licença poética deveríamos
admitir, como sociedade, que o trabalhador, que busca “a certidão pra nascer e
a concessão pra sorrir”, acabe cruelmente indefeso “no chão feito um pacote
bêbado”.
Normas regulamentadoras: não se pode
admitir que o trabalhador acabe como um pacote flácido
*Leomar Daroncho - É procurador do Trabalho e diretor geral do Ministério Público do Trabalho.
*Bruna
Bonfante - É procuradora do Trabalho.
Fonte: Publicado na CartaCapital
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