Além de demonstrarem desconhecimento
sobre a divisão de áreas de conhecimento da UNESCO e do próprio governo,
Presidente e Ministro também não se preocuparam em olhar os dados, ouvindo
apenas seus próprios preconceitos.
O governo realmente gasta muito com
universidades públicas?
Uma comparação internacional dos
dispêndios públicos com ensino superior
As
manifestações de estudantes e professores contra os cortes de
verbas da educação trouxeram o tema do financiamento do ensino superior de
volta ao centro do debate público nacional, tornando-o um ponto de preocupação
e fragilidade do atual governo (claro que por pouco tempo, devido à alta
produtividade da ‘usina
de crises’). Mas, com o acirramento do debate, o choque enfurecido
entre posições ideológicas parece ter ganhado preponderância sobre a análise
concreta e embasada dos fatos, e convicções pessoais passaram a ser fundamentos
suficientes para o convencimento ou tomada de decisão. Nesse contexto, parece
importante voltar ao básico e fazer o exercício de levantar dados e informações
que permitam traçar um panorama dos gastos públicos com ensino superior no
país, fornecendo assim uma base factual mínima para a análise da controvérsia.
Se o debate público é positivo por expor
os dilemas e dificuldades envolvidos nas escolhas de políticas públicas, a
polarização tem cobrado um alto preço ao desqualificar essa discussão,
cultuando o maniqueísmo como norma e a arrogância como postura. Nessa arena,
angariar o apoio da opinião pública ou das redes sociais consolida-se como
único objetivo a ser alcançado, independente da razoabilidade das propostas ou
da qualidade dos argumentos. Prescinde-se da apresentação de fatos ou
evidências, e desconsidera-se todo o conhecimento construído por décadas de
pesquisa a respeito do ensino universitário, valendo inclusive apelar para
teses esdrúxulas como ‘balburdia
nas universidades’.
A fim de contribuir para esse debate e
tentar descrever de maneira um pouco mais embasada a situação do financiamento
do ensino superior no país, são apresentados alguns indicadores básicos, utilizando os dados mais recentes
disponibilizados pela UNESCO e abertos ao público. Os números para
o Brasil são comparados aos de um conjunto selecionado de países, considerando
nações que apresentam um nível de desenvolvimento humano e econômico mais
elevado ou parecido com o nosso. Com base nesses indicadores, são propostas
quatro conclusões sobre o tema:
1) O governo brasileiro não gasta
excessivamente com educação superior. Os
gastos públicos brasileiros com universidades representaram cerca de 1,34% do
Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2015, um percentual próximo ou mesmo
inferior ao praticado em diferentes economias desenvolvidas ou em
desenvolvimento. Outros pontos podem e devem ser questionados (como a
eficiência e distribuição dos gastos), mas, considerando a comparação
internacional, fica difícil afirmar que o esforço brasileiro com ensino superior
seja exagerado.
2) Além disso, o ensino superior não
consome uma parcela elevada do gasto público em educação. De
acordo com os dados da UNESCO, apenas 21,5% do que o governo brasileiro
dispendeu com educação em 2015 foi para as universidades, um percentual
inferior àquele alocado recentemente por governos de diversos países, como os
Estados Unidos (27,5%), a Turquia (34,6%), o Chile (25,4%), o Reino Unido
(24,2%) e a Bélgica (22,1%).
3) O estudante universitário brasileiro
custa mais barato para os cofres públicos do que em muitos outros países.
Uma
das argumentações empunhadas pelo Ministro da Educação em sua
cruzada contra as universidades públicas é a de que os alunos dessas
instituições custariam caro aos cofres públicos, se comparados aos estudantes
de educação básica. A estratégia retórica induz o público a pensar que só no
Brasil o ensino universitário constitui um investimento elevado, tratando a
educação como uma ‘Escolha de Sofia’, na qual apenas um dos níveis – educação
básica ou superior – deveria ser financiado. Mas um princípio básico da
economia é que qualquer gasto público sempre pode ser comparado a outra opção.
Assim, poderíamos da mesma forma indagar ao Ministro quantos alunos de educação
básica poderiam ser financiados com o perdão
das dívidas de partidos políticos no valor de aproximadamente R$ 70 milhões, com
o perdão de R$ 17 bilhões que o presidente quer conceder ao agronegócio,
ou ainda com
as despesas que o governo vem tendo com a dança de cadeiras no MEC.
Um parâmetro mais sensato para
investigar se o estudante universitário brasileiro custa muito ou pouco é
comparar o gasto por aluno entre países. Fazendo isso, constatamos que o custo
por estudante para os cofres públicos no Brasil é baixo, de cerca de 2,9 mil
dólares norte-americanos por ano em 2015 (aproximadamente onze mil reais,
considerando o câmbio atual). Trata-se de um valor quase quatro vezes menor do
que o custo de um aluno universitário para o governo dos Estados Unidos, menos
de cinco vezes o valor na Inglaterra, e aproximadamente um décimo do custo de
um estudante norueguês para o tesouro.
4) O percentual de alunos universitários
brasileiros nas áreas de ‘humanas’ encontra-se abaixo do observado em outros
países. Esse
ponto afeta apenas indiretamente o financiamento do ensino superior, mas é
abordado porque o
Ministro da Educação e o Presidente da República questionaram o financiamento
dos alunos de filosofia e sociologia (referindo-se a essas áreas como de
‘humanas’), dando a entender que o estado deveria reduzir o seu
investimento nesses cursos.
Além de demonstrarem desconhecimento
sobre a divisão de áreas de conhecimento da UNESCO e
do próprio
governo, Presidente e Ministro também não se preocuparam em olhar os
dados, ouvindo apenas seus próprios preconceitos. Se tivessem pesquisado,
saberiam que o Brasil forma um percentual reduzido de estudantes nas áreas
gerais de ‘Artes e Humanidades’ (3,2% dos estudantes universitários formados em
2017) e ‘Ciências Sociais, Comunicação e Jornalismo’ (4,7% dos alunos
formados), que contemplam os cursos de filosofia e sociologia, respectivamente.
São proporções bem inferiores àquelas observadas em diversos países
desenvolvidos, incluindo nos Estados Unidos, onde a área geral de ‘Artes e
Humanidades’ responde por aproximadamente 20% dos alunos formados em nível superior.
Apresentados os dados, é importante
lembrar que eles funcionam como fotografias, retratando apenas uma parcela da
realidade que se deseja destacar. Por isso mesmo, números podem sugerir
diferentes interpretações ou ser criticados a partir de várias perspectivas. Pode-se,
por exemplo, questionar se os indicadores sugeridos são apropriados para
refletir a situação brasileira, se os países selecionados para comparação são
adequados, ou se o horizonte temporal está correto. O que não se pode aceitar é
a desconsideração absoluta de pesquisas ou conjuntos de dados, sob o argumento
pouco razoável de que não
é isso que se vê nas ruas, como quer o Ministro da Cidadania, ou
assumindo-se a hipótese heroica de que todos
os pais e mães são responsáveis, como sugeriu o Presidente sobre as
cadeirinhas para crianças.
Uma ironia sobre a polêmica do
financiamento do ensino superior é que a posição de reduzir os gastos públicos
defendida com tanta veemência pelo Ministro Weintraub é mais próxima de Karl
Marx do que dos chamados economistas ‘ortodoxos’ ou neoclássicos. Enquanto
estes reconhecem que a educação em nível superior gera resultados para toda a
sociedade (as chamadas ‘externalidades positivas’), e que, por esse
motivo, deve ser parcialmente financiada pelo estado, Marx declarava que uma
universidade gratuita significa apenas que “ali as classes altas
pagam suas despesas de educação às custas do fundo dos impostos gerais”.
Mas é claro que esses argumentos devem ser considerados à luz dos dados e do
momento histórico em que foram proferidas, pois equiparar o papel e alcance do
ensino superior à época de Marx com os dias atuais faz tão pouco sentido quanto comparar
universidades a ‘chocolatinhos’.
*Daniel Gama e Colombo é doutor em Economia do Desenvolvimento
pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, e mestre em
Direito Econômico pela Faculdade de Direito da USP. Pertence à carreira de
Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério da
Economia, e atua na Diretoria de Estudos Educacionais do Inep. As ideias
expressam a opinião pessoal do autor, que é integralmente responsável pelo
artigo.
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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