"A continuidade da dominação
segrega um senso comum capitalista, racista e sexista que serve as forças de
direita, até porque é reproduzido incessantemente por grande parte da opinião
publicada e pelas redes sociais", escreve o sociólogo Boaventura de Sousa
Santos
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Esplanada dos Ministérios (Foto: Arquivo/Agência Brasil) |
Os conflitos sociais têm ritmos e
intensidades que variam consoante as conjunturas. Muitas vezes acirram-se para
atingir objectivos que permanecem ocultos ou implícitos nos debates que
suscitam. Num período pré-eleitoral em que as opções políticas sejam de
espectro limitado os conflitos estruturais são o modo de dramatizar o
indramatizável.
Os conflitos estruturais do nosso tempo
decorrem da articulação desigual e combinada dos três modos principais de
desigualdade estrutural nas sociedades modernas. São eles, capitalismo,
colonialismo e patriarcado, ou mais precisamente, hetero-patriarcado. Esta
caracterização surpreenderá aqueles que pensam que o colonialismo é coisa de
passado, tendo terminado com os processos de independência. Realmente, o que
terminou foi uma forma específica de colonialismo -- o colonialismo histórico
com ocupação territorial estrangeira. Mas o colonialismo continuou até aos
nossos dias sob muitas outras formas, entre elas, o neocolonialismo, as guerras
imperiais, o racismo, a xenofobia, a islamofobia, etc. Todas estas formas têm
em comum implicarem a degradação humana de quem é vítima da dominação colonial.
A diferença principal entre os três modos de dominação é que, enquanto o
capitalismo pressupõe a igualdade abstracta de todos os seres humanos, o
colonialismo e o patriarcado pressupõem que as vítimas deles são seres sem
plena dignidade humana, seres sub-humanos. Estes três modos de dominação têm
actuado sempre de modo articulado ao longo dos últimos cinco séculos e as
variações são tão significativas quanto a permanência subjacente. A razão
fundante da articulação é que o trabalho livre entre seres humanos iguais,
pressuposto pelo capitalismo, não pode garantir a sobrevivência deste sem a
existência paralela de trabalho análogo ao trabalho escravo, trabalho
socialmente desvalorizado e mesmo não pago. Para serem socialmente aceitáveis,
estes tipos de trabalho têm de ser socialmente vistos como sendo produzidos por
seres humanos desqualificados. Essa desqualificação é fornecida pelo
colonialismo e patriarcado. Esta articulação faz com que as pessoas que acham
desejável a desigualdade social do capitalismo tendam a desejar também a
continuação do colonialismo e do patriarcado, e sejam, por isso, racistas e
sexistas, mesmo que jurem não sê-lo. Esta é a verdadeira natureza dos grupos
políticos de direita e de extrema direita. Se, numa dada conjuntura, as preferências
racistas e sexistas vêm ao de cima é quase sempre para expressarem a oposição
ao governo do dia, sobretudo quando este é menos pró-capitalista que o desejado
por tais grupos.
O drama do nosso tempo é que, enquanto
os três modos de dominação moderna actuam articuladamente, a resistência contra
eles é fragmentada. Muitos movimentos anticapitalistas têm sido muitas vezes
racistas e sexistas, movimentos anti-racistas têm sido frequentemente
pró-capitalistas e sexistas e movimentos feministas têm sido muitas vezes
pró-capitalistas e racistas. Enquanto a dominação agir articuladamente e a
resistência a ela agir fragmentadamente, dificilmente deixaremos de viver em
sociedades capitalistas, colonialistas e homofóbicas-patriarcais. Talvez, por
isso, e como se tem visto ultimamente, aos jovens de muitos países seja hoje
mais fácil imaginar o fim do mundo (pelo agravamento da crise ambiental) do que
o fim do capitalismo. A assimetria entre a dominação articulada e a resistência
fragmentada é a razão última da tendência das forças de esquerda para se
dividirem em guetos sectários e das forças de direita para se promiscuirem em
amálgamas ideológicas na mesma cama do poder.
A continuidade da dominação segrega um
senso comum capitalista, racista e sexista que serve as forças de direita, até
porque é reproduzido incessantemente por grande parte da opinião publicada e
pelas redes sociais. Porque age na corrente, a direita pode dar-se ao luxo de
ser indolente e transmitir a ideia de "estar ao corrente" e, quando
tal não funciona, acciona a sua asa de extrema direita (tão presa ao seu tronco
quanto a asa de direita moderada) para dramatizar o discurso e provocar novas
divisões nas esquerdas, sobretudo se estas ocupam o poder de governo e estamos
em período pré-eleitoral e a ausência de alternativas credíveis salta aos
olhos. Pelo contrário, as forças de esquerda estão sempre à beira do abismo da
fragmentação por terem sido treinadas no mundo eurocêntrico para desconhecer ou
descartar as articulações entre os três modos de dominação. As dificuldades são
ainda maiores por terem de agir contra a corrente do senso comum reacionário.
Identifico duas tarefas urgentes para superar tais dificuldades. A primeira é
de curto prazo e tem um nome: pragmatismo. Se a agressividade do pensamento
reacionário, explicitamente racista e encobertamente hiper-capitalista e
patriarcal, é a que se observa e ocorre num país cujos cidadãos ainda há
cinquenta anos eram vítimas de racismo por toda a Europa dita desenvolvida e
antes disso tinham sido ostracizados como brancos escuros -- ou portygyes nas
Caraíbas, Hawaii e EUA -- se tudo isto ocorre num país cujo poder de governo é
ocupado por forças de esquerda, é fácil imaginar o que será quando voltarmos
(se voltarmos) a ser governados pela direita. O entendimento entre as forças de
esquerda tem contra si forças imensas, nacionais e internacionais: capitalismo
financeiro global, privatarias público-privadas, Comissão Europeia, Embaixadas
norte-americana e de muitos países europeus, agências da sociedade civil
supostamente promotoras da democracia, Igrejas conservadoras, a razão indolente
da direita infiltrada há muito no PS português contra a militância corajosa do
último Mário Soares, a razão indolente do sectarismo de pequenos grupos de
esquerda radical que têm sempre os dois pés no mesmo sítio para acreditarem que
são firmes em vez de estáticos. Mas o que está em jogo é muito e o pragmatismo
impõe-se. Quando a direita começa a defender transportes públicos e saúde
pública, a esquerda no governo deve lembrar-se do que está a esquecer. A
resposta à extrema-direita racista tem de ser tanto política como jurídica e
judicial. Defendo há muito que as lutas jurídicas contra o senso comum
reacionário só devem ocorrer depois de tais lutas terem adquirido forte densidade
política. É, pois, imprudente determinar em abstracto a validade da via
jurídico-judicial ou da via política.
A segunda tarefa é de longo prazo e
consiste em descolonizar o saber científico e popular e o poder, tanto social
como cultural e político. Esta tarefa é particularmente difícil em Portugal por
duas razões. Em primeiro lugar, a última fase da descolonização do colonialismo
português ocorreu há muito pouco tempo (1961-1975). As feridas coloniais estão
ainda tão abertas e fundas que, tal como as crateras produzidas pela mineração
a céu aberto, parecem parte integrante da paisagem. O longo ciclo colonial está
inscrito na carne do país até ao mais íntimo tutano. Um país com tanta falsa
esperança histórica sente-se agora dominado por tanto falso medo de ser menos
europeu que a Europa desenvolvida que sempre recolonizou o colonialismo
português para maior benefício dela. Por sua vez, os países que nasceram da
luta anticolonial contra Portugal tiveram o privilégio de sofrer o menor ónus
neocolonial. Todos sem excepção se afirmaram orgulhosamente socialistas e não
apenas independentes. Foram, porém, rapidamente postos na ordem pelo
capitalismo financeiro global. Sucederam-se lideranças que querem esquecer a
violência e rapina colonialistas para melhor ocultarem a violência e a rapina
que elas próprias vão exercendo contra as suas populações.
A segunda decorre do facto de os
processos de independência terem ocorrido como uma dupla revolução: nas então
colónias, a revolução da independência, e em Portugal, a revolução da
democracia do 25 de Abril de 1974. Os mesmos militares, que sustentaram o
regime colonial no seu último período, participaram na guerra dita de
pacificação e certamente cometeram as atrocidades correspondentes, são também
os heróis de que muito nos orgulhamos por terem aberto o caminho às
independências sem peias neocoloniais e pela democracia que nos devolveram em
Portugal. Passará ainda algum tempo para que as feridas se exponham, e assim
possam ser eficazmente curadas.
*Director Emérito do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra
Fonte: Publicado no Brasil 247
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