'Com a extinção da secretaria responsável pela EJA, o fim do
organismo participativo da agenda e a interrupção da distribuição de materiais
didáticos, modalidade é abandonada pelo Governo Federal'
Por
Redação
Os primeiros meses de governo Bolsonaro
registraram várias incertezas para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Já no
dia 2 de janeiro, ao nomear a equipe do Ministério da Educação, o presidente
dissolveu a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI).
O órgão era responsável não apenas pela
modalidade de EJA em específico, como também por outras modalidades cujos
sujeitos, frequentemente, são também estudantes da EJA, como a Educação do
Campo e a Educação nas Prisões.
Em seu lugar, foram criadas duas novas
secretarias: a Secretaria
de Alfabetização e a Secretaria de Modalidades Especializadas
da Educação. No decreto que as instituiu, entretanto, não há nenhuma diretoria
específica dedicada à modalidade.
As estratégias e princípios da EJA tampouco
aparecem no desenho atual da Política Nacional de Alfabetização. Meta dos 100
dias de governo assinada em 11 de abril, o documento tem uma única menção à
Educação de Jovens e Adultos: o desenvolvimento de materiais didático-
pedagógicos.
O Programa Nacional do Livro Didático (EJA),
entretanto, teve sua última distribuição de livros em 2016: é o que afirma Luiz
Alves Junior, diretor presidente da Global Editora, única editora no Brasil que
atende estudantes de EJA no Ensino Médio.
“Temos um universo grande, de milhões de
estudantes que estão marginalizados pelo governo. De jovens e adultos que não
têm material para dar continuidade aos estudos, não têm acesso ao material
didático há 3 anos. Este é o maior crime com estas pessoas. Eu considero isso
uma tremenda traição a este povo. A preocupação da editora é colher neste
momento alguma informação do governo sobre a continuidade da atenção à EJA. O
próprio MEC não tem ninguém respondendo até o momento como coordenação de EJA”,
relata.
Ainda agravando a conjuntura, a Comissão
Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), que reunia
representantes de movimentos sociais e da sociedade civil para assessorar a
política de EJA no MEC, foi extinta no início de abril por um decreto federal
que modificou o Sistema Nacional de Participação Social.
Diante deste cenário de incertezas, o
especial Educação em Disputa: 100 dias de Bolsonaro ouviu três especialistas no
assunto:
Roberto
Catelli Jr., pesquisador da EJA, doutor em educação pela Universidade de São
Paulo (USP) e coordenador executivo da Ação Educativa
Sonia
Couto Feitosa, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP),
professora aposentada da Rede Municipal de Educação de São Paulo e diretora do
Instituto Paulo Freire
Miguel
Arcanjo Caetano, representante do Fórum EJA na Comissão Nacional de
Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA/SECADI/MEC)
Para começar, você poderia fazer um breve panorama sobre a
escolaridade de jovens e adultos no Brasil atual?
Roberto Catelli: Sabemos
que cerca da metade dos brasileiros com 15 anos ou mais não concluiu o Ensino
Fundamental no Brasil. É uma dívida social enorme. Temos cerca de 3 milhões de
matrículas e cerca de somente metade dessas pessoas concluindo um período
letivo. Falta investimento do Estado na modalidade, que é marginal no país. Tem
o menor orçamento e pouco se investe na formação de educadores, metodologias e
criação de escolas apropriadas para jovens e adultos.
Sonia Couto: A maioria
é composta por pessoas que não conseguiram se alfabetizar na infância. Algumas
tiveram uma passagem pela escola, mas não conseguiram dar continuidade por
questões financeiras. É um público bastante diverso na sua faixa etária. É
também diverso na questão étnica, tem indígenas e quilombolas. Temos,
principalmente, pessoas de origem pobre. Pessoas do campo. Muitas mulheres.
Adultos que não conseguiram terminar sua escolaridade. Alguns nunca chegaram a
iniciar, outros começaram, mas tiveram que largar. São mais de 12 milhões de
brasileiros.
Miguel Caetano: O Brasil
tem uma população em torno 25 milhões de jovens entre 15 e 29 anos ou mais de
idade que não frequentam a escola e que não têm o Ensino Fundamental completo.
O número de estudantes matriculados na modalidade EJA é mais de 3,7 milhões de
pessoas. (INEP/MEC,2017). Da população com 15 anos ou mais de idade, há uma
estimativa de 11,5 milhões de analfabetas [7,%]. (PNAD/IBGE,2017). Dito isto, é
óbvio que o ideal seria fomentar polÍticas públicas para superar o
analfabetismo no Brasil, compreendendo que a ação alfabetizadora deve
oportunizar a continuidade dos estudos em turmas de Educação de Jovens e
Adultos. Pois, do contrário, todo esforço feito a partir de 2003 com o PBA
–Programa Brasil Alfabetizado seria inócuo.
O que é imprescindível para uma boa política de EJA?
Catelli: É
importante levar em conta a diversidade de seus sujeitos, propondo modelos
educativos que contemplem a heterogeneidade e não simplesmente um padrão
homogêneo que não atende aos diversos sujeitos: idosos, jovens, trabalhadores
urbanos e rurais, jovens em liberdade assistida, encarcerados e um grande
conjunto de pessoas que. por diversas razões, foram excluídas da escola.
Além disso, é necessário investir em
currículos adequados, criação de espaços educativos de fácil acesso para estes
jovens e adultos e lançar mão de um conjunto de políticas intersetoriais que
possam promover a permanência desses sujeitos nesse espaço educativo.
Couto: Primeiro,
vontade política de conhecer a EJA como direito, não favor ou caridade. Pensar
que essas pessoas tiveram esse direito negado, há uma dívida social com elas. É
imprescindível o reconhecimento de que essas pessoas têm direito de ler e
escrever, de ter acesso à tecnologia, de ter conhecimentos matemáticos, de
conhecer seu território, de saber as questões sociais que permeiam sua vida.
Segundo, o financiamento. São duas coisas que andam juntas. Por mais que se
tenha boa vontade, não se faz política sem recurso. E a EJA sempre foi privada
disso. Teve menor índice de investimento.
Às vezes, os políticos entendem a educação
como gasto. Mas ela tem que ter uma centralidade e, por isto, precisa de
recursos adequados. Aliado a tudo isto tem uma questão social de que muitas
escolas não querem ofertar a EJA. Estados e municípios precisam ter incentivo
para ofertá-la. Como nos recursos do FUNDEB os percentuais para outras
modalidades são maiores, as escolas acabam valorizando outras modalidades.
Caetano: A EJA
necessita de muitas ações políticas para que esta modalidade cumpra seu papel
social e resgate o direito à escolarização desta população que foi abandonada
pelo estado. Isto exigirá, de gestores e gestoras e dos governos, compressão de
que a adoção de uma política pública específica para estes sujeitos não se
constrói de forma solitária, mas com a participação da sociedade como um todo,
de modo a superar formas veladas, sutis e/ou explícitas de exploração e
exclusão, das quais a desigualdade se vale. Para isso, será preciso revisitar
os documentos já construídos por todos os movimentos que orbitam em torno da
modalidade.
Quais ações, programas e políticas desenvolvidas para a EJA
foram implementadas nos últimos anos? Como funcionavam?
Catelli: Tivemos o
Programa Brasil Alfabetizado no campo da alfabetização, programas específicos
para a população do campo, como o Saberes do Campo, o Projovem e também o
PROEJA, que aliou a formação escolar com a profissional. Elas conseguiram
atingir públicos específicos com diferentes perfis, mas não chegaram a ter o
alcance que poderiam para fazer com que o país avance no processo de
escolarização de jovens e adultos.
Couto: No começo
do século passado, a preocupação com a EJA era inexistente. Só a partir de 1947
houve um dos primeiros programas que se dedicaram a jovens, adultos e
adolescentes. Como outros programas, ocorreu em caráter de campanha. O grande
problema que atinge a EJA é que os programas federais não são pautados em uma
política, e sim em caráter de campanha, de assistencialismo. Procuram dar
respostas imediatas a um problema que é secular e que precisa de uma política
centrada em sua resolução.
Tivemos o sistema Paulo Freire, que foi um
divisor de águas nessa questão da educação para adultos. Com a saída de Paulo
Freire, o Mobral perpetuou até 1985. Foi então fundada a Fundação Educar,
gerida pelo governo federal para apoiar as Secretarias na EJA. Aqui em São
Paulo, esse trabalho não era desenvolvido pela Secretaria de Educação, mas pela
de Bem Estar Social. Então a EJA estava deslocada de seu âmbito, que deveria
ser a educação. Depois, com Collor, houve o Programa Nacional Alfabetização e
Cidadania (PNAC), seguido pelo Alfabetização Solidária (PAS) do Fernando
Henrique. E, desde 2003, temos o Programa Brasil Alfabetizado (PBA).
Todos eles têm caráter de repasse de
recursos, não existe uma definição, um alinhamento metodológico. Há uma
parceria feita com instituições que se incumbem de fazer o acompanhamento, dar
formação, mas cada uma com sua linha metodológica. Então acontece de acordo com
os interesses de quem está desenvolvendo. Não existe política nacional que
amarre tudo isso.
Caetano:
1
– O Programa Brasil Alfabetizado – PBA : que possui uma flexibilidade para
atender uma diversidade regional e de público em um país com as dimensões do
Brasil. Contempla várias metodologias e práticas. Teve seu início em 2003 sem
garantir a continuidade da escolarização.
2
– Em 2012, após muita luta dos movimentos sociais, a Resolução/CD/FNDE nº 48,
de 2 de outubro de 2012, editada para garantir a abertura de novas turmas de
EJA com auxílio do governo federal.
3
– Proeja FIC: Associar cursos de qualificação profissional (FIC) a turmas de
EJA (Ensino Médio ou Fundamental) novas ou em desenvolvimento
4
– Proeja Técnico: Articular EJA e cursos técnicos, nas formas integrada e
concomitante
5
– Pronatec EJA: Matrículas de EJA (ensinos fundamental e médio) articulada à
Educação Profissional
E hoje, que ações, programas e políticas têm
sido desenvolvidos?
Catelli: Vivemos
hoje uma grande crise, não temos clareza sobre os destinos do programa de
alfabetização, o Projovem foi extinto e o programas para o campo vem sendo
descontinuados. Nem mesmo material didático para a modalidade está sendo
distribuído pelo governo. Não há programas ou propostas no nível federal desde,
pelo menos, 2016.
Couto: O PBA
ainda está sendo ofertado, mas com uma redução absurda. Para se ter uma ideia,
em 2013/2014, o PBA atendeu mais de 1 milhão de pessoas. Em 2014, 7961 mil.
Hoje, apenas 250. Ou seja, menos de ¼ do que se atendia.
E a população de pessoas não alfabetizadas
não diminui. Porque além da oferta para alfabetização ser pequena, não há
continuidade. As pessoas aprendem a ler e escrever e não conseguem vagas para
seguir sua escolarização. Então, entram em um processo de esquecimento. Chegam
a aprender algo, mas com o tempo esquecem. O processo tem que ser contínuo.
Terminou a alfabetização, segue ao Fundamental e então ao Médio. Mas,
infelizmente, as portas se fecham a cada dia.
Eu dei aula na rede pública por 31 anos. E vi
como a escola acaba criando estratégias para não fazer essa oferta. Por
exemplo, o aluno chegava perguntando se tinha vaga. Se falava que não. Mas para
a Secretaria se falava que não havia demanda. Então, há uma demanda invisibilizada
e a falsa ausência de demanda justifica o fechamento da EJA.
Caetano: A partir
de 2017, o retrocesso tem acabado com tudo que conseguimos construir a duras
penas no MEC, inclusive permitindo, com sua omissão, o fechamento
indiscriminado de turmas de EJA em todo brasil e, agora em 2019, com as
indefinições no ministério e o fim da SECADI, a secretaria que se propunha ao
menos ouvir os reclames dos movimentos sociais, ficamos órfãos de vez.
Quem está cuidando da EJA no MEC hoje?
Catelli: Até 2018 havia a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), uma
secretaria dedicada ao tema da diversidade. Com a posse de Bolsonaro, um dos
primeiros atos do governo foi extinguir a SECADI. Ao que se sabe, decretou-se
também o fim da política de EJA no governo federal. Embora ela tenha sido
alocada formalmente na Secretaria de Educação Básica (SEB), não há diretoria ou
coordenação responsável pela EJA. Ela existe só no papel, não há programa,
gestor, proposta para a modalidade. O programa de alfabetização também só se
refere às crianças. É trágico, considerando nossa enorme dívida social no campo
da educação.
Couto: Com a
extinção da SECADI, que era a secretaria em que a EJA estava abrigada, foram
criadas a SEMESP e a Secretaria de Alfabetização. Então a gente percebe que há
um não lugar da EJA. A EJA não tem lugar dentro do MEC atualmente. Se o cenário
está complicado para as modalidades que sempre tiveram prestígio, imagina para
a EJA, que não tinha prestígio social.
A gente ainda tem alguma coisa de PRONATEC,
em parceria com o Sistema S, mais voltado ao Ensino Técnico. Em São Paulo, tem
o Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA). Mas, em nível federal, apenas o
PBA.
Lastimo muito que vários órgãos de participação
popular tenham sido extintos, entre eles a Comissão Nacional de Alfabetização e
Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), que era uma comissão que eu e o Catelli
fazíamos parte, composta por diferentes segmentos, e que tinha por
responsabilidade assessorar o Ministro da Educação no estabelecimento de uma
política pública para a EJA. Mesmo em governos mais progressistas era uma
missão difícil, mas tínhamos um momento de escuta. Íamos até o MEC, ouvíamos as
propostas, falávamos das nossas pautas.
Construímos um documento de Política Nacional
de EJA, que delineava quais os pontos e diretrizes necessárias para a melhoria
da qualidade da EJA no Brasil. Com a extinção desse órgão, nem este momento de
escuta existe mais. Nem nós sabemos como se está pensando a política, nem o MEC
ouvirá nossas demandas e pautas. Infelizmente, essa ausência de diálogo vai
comprometer muito a qualidade e a oferta de EJA no Brasil.
Caetano: De janeiro
para cá fomos jogados no vento, não sabemos nem se ainda existimos na estrutura
do MEC, pois o mesmo não se pronuncia oficialmente.
Silêncio institucional
O especial tentou contato com o Ministério da
Educação e enviou à assessoria de imprensa do órgão alguns pedidos de
esclarecimento sobre a política para a modalidade. Até hoje, entretanto, não
houve resposta. As informações solicitadas foram:
– Após a dissolução da SECADI, as
atribuições da Educação de Jovens e Adultos (EJA) migraram, formalmente, para a
Secretaria de Educação Básica (SEB). No organograma do Ministério da Educação
(MEC) disponível no site do governo federal, entretanto, não há nenhuma diretoria
ou profissional dedicado exclusivamente à modalidade. Quem é atualmente
responsável pela EJA? Em que diretoria a modalidade está alocada?
– Que ações, programas e políticas serão
realizadas para esta modalidade?
– No site do Ministério, não há nenhuma
informação recente sobre o Programa Brasil Alfabetizado. Qual é a perspectiva
para o programa?
– O PNLD EJA desde o ano passado não
distribui livros. Ele será descontinuado?
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