'É possível ser de esquerda e se opor a Stálin ou
Mao, sem negar que eles também assumiam um discurso de esquerda. É possível
julgar que a esquerda é o lado certo, sem achar que todo mundo que está à
esquerda é necessariamente bom. A direita podia fazer o mesmo'
Há uma estranha obsessão – de
Bolsonaro, Olavo de Carvalho e outros chefes da direita brasileira – por
defender em público a ideia de que o nazismo foi um movimento de esquerda.
É um disparate, que só se torna
possível no ambiente de “pós-verdade” em que caímos. Enquanto as
chamadas “fake news” são mentiras destinadas a orientar a compreensão dos
fatos correntes (e as consequentes escolhas políticas), a pós-verdade constrói
narrativas amplas baseadas na desqualificação das fontes antes aceitas como
legítimas de validação, como a ciência, a academia e a lógica elementar, a
partir em geral de uma visão conspiratória.
A terra é plana. Não existiu ditadura
no Brasil. O nazismo era de esquerda.
O terraplanismo difere dos outros
exemplos porque remete a um par conceitual menos complexo (plano, esférico).
Para afirmar que o regime de 1964 foi uma ditadura, preciso ser capaz de
definir em que consiste uma “ditadura”. Mas é possível alcançar uma
definição suficientemente consensual – ausência de autorização dos governados,
uso de violência aberta contra os opositores, negação das liberdades civis,
imposição unilateral da vontade do grupo no poder – para nela incluir, sem
margem para dúvida, um caso tão pouco complexo quanto o da ditadura brasileira.
A (correta) crítica ao silenciamento
de vozes alternativas pela imposição dos saberes dominantes fez com que, muitas
vezes, pessoas progressistas não saibam como reagir a esse tipo de ofensiva. Se
acreditamos no relativismo radical que esteve na moda por certo tempo, não
temos como combater a pós-verdade.
Um exemplo: quando o Ministério da
Educação tentou proibir os cursos sobre o golpe de 2016 nas universidades,
muita gente protestou, em defesa da liberdade de cátedra e prosseguiu afirmando
que, se fossem oferecidos cursos sobre a “revolução” de 1964, também
deveriam ser aceitos. Não deveriam. A discussão sobre o caráter da derrubada de
Dilma Rousseff é uma controvérsia legítima. Já a discussão sobre a quartelada
de 1964 já está bem encerrada entre os historiadores, pelo menos no que se
refere a ter sido um golpe. Seriam necessárias muitas novas evidências para
reabrir o debate, tanto quanto só novas descobertas muito fortes e
surpreendentes tornariam legítima uma disciplina sobre a terra plana em um
curso de Astronomia.
No caso de “direita”
e “esquerda”, há ainda o fato de que se trata de uma metáfora, baseada em
algo fortuito – a disposição dos assentos na Assembleia revolucionária francesa.
Nesse sentido, é um rótulo arbitrário; nada indica que exista relação entre ser
destro ou ser canhoto e ter tal ou qual simpatia política.
A rigor, qualquer um poderia inventar
uma distinção esquerda/direita de acordo com os critérios que bem quisesse. O
uso, no entanto, reduziu muito essa margem de arbítrio.
A não ser para um insustentável
nominalismo radical, que seguisse o moto de Humpty Dumpty, a personagem
de Alice através do espelho (”cada palavra significa exatamente
aquilo que eu quero que ela signifique naquele momento”), temos sempre que
remeter o conceito ao uso consolidado, que permite que ele – a despeito de
eventuais polêmicas pontuais – faça parte de uma linguagem compartilhada. E a
clivagem direita/esquerda, desde que surgiu, se organiza em torno de duas
questões.
A primeira é a questão da igualdade,
que Norberto Bobbio, num livrinho famoso, afirmou ser a grande linha divisória.
A esquerda defende uma sociedade mais igualitária. A direita afirma que a
desigualdade é necessária, é inevitável, é a consequência automática das
diferenças naturais entre os seres humanos, é o resultado incontornável das
interações entre as pessoas.
Regimes que classificamos como sendo
de esquerda podem produzir desigualdades terríveis, mas seu discurso sempre é
igualitário. Já o fascismo e o nazismo são abertamente anti-igualitários.
Pregam uma ordem social hierárquica. Afirmam que existe uma raça superior às
outras.
A outra questão é o lado em que se
colocam no conflito entre capital e trabalho. Os regimes nazi-fascistas foram
apoiados pelas grandes corporações capitalistas, que financiaram os movimentos
que deram origem a eles. Foram vistos como a salvação diante da ameaça
representada pelo avanço da classe trabalhadora a partir da Revolução Russa –
posição, aliás, do próprio Ludwig von Mises. Eram regimes de Estado forte, sim,
mas que permitiam lucros crescentes, exatamente pela repressão feroz sobre os
trabalhadores. Como disse alguém, enquanto a União Soviética estatizava as
empresas, o nazi-fascismo estatizou o trabalho e cedeu-o aos capitalistas, que
usavam a mão de obra escravizada dos prisioneiros.
Resolvida a questão conceitual,
sobram apenas anedotas, como o fato de que Mussolini começou sua vida política
no Partido Socialista. O que isso quer dizer? José Serra, Cristovam Buarque,
Roberto Freire, Aloysio Nunes Ferreira… O número de direitistas que foram de
esquerda no passado é enorme. E não custa lembrar que o Mussolini “socialista”
foi, na verdade, um agente do serviço secreto britânico (https://www.theguardian.com/world/2009/oct/13/benito-mussolini-recruited-mi5-italy).
Ou então lembram que o nome completo
do Partido Nazista era “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães”.
Deve ser o mesmo pessoal que acredita que a Coreia do Norte é democrática
porque o nome oficial é “República Democrática da Coreia”. Ou que o PSDB é
social-democrata, que o Novo não é velho. Na verdade, a inclusão de
“socialista” e “trabalhadores” no nome serve apenas para lembrar que o
nazi-fascismo surge como reação do capital à ameaça da revolução operária.
É possível ser de esquerda e se opor
a Stálin ou Mao, sem negar que eles também assumiam um discurso de esquerda. É
possível julgar que a esquerda é o lado certo, sem achar que todo mundo que
está à esquerda é necessariamente bom. A direita podia fazer o mesmo.
Mas uma parte cada vez maior dela não
o faz. Por quê?
Uma hipótese é a cortina de fumaça.
Bolsonaro lançaria factoides para desviar a atenção do principal – ficamos
discutindo a Alemanha dos anos 1930 e, enquanto isso, a Reforma da Previdência,
as milícias, o corte no gasto social etc. Talvez, embora o timing e o tom
desastrados de muitas de suas declarações não colaborem para pensar que é algo
tão bem planejado. De todo modo, o campo democrático não tem como se furtar
desse tipo de debate. Pode ser diversionismo para eles, não para nós, que
acreditamos (de verdade, não como frase de efeito) que é necessário conhecer o
passado para entender o presente.
Outra hipótese é o retorno do
recalcado. O nazismo é o horizonte final do delírio repressivo e autoritário
que move Bolsonaro, o que o torna tanto uma sombra sempre presente em sua mente
quanto algo do que se faz necessário se afastar de público.
A terceira hipótese se liga à
produção do pânico e do ódio, que é central na estratégia política da
extrema-direita. O outro lado – a esquerda – tem que ser a fonte de todo o mal,
da destruição da família à corrupção, de mamadeiras excêntricas à doutrinação
nas escolas. Ter o exemplo mais acabado do mal no mundo contemporâneo associado
à direita compromete essa narrativa e leva ao sério risco de colocar alguma
dúvida na cabeça dos seguidores.
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