O que há de
esperar de um presidente cujo único projeto é acabar com um socialismo que não
existe e não existia no Brasil? Bolsonaro parece cada vez mais um Dom Quixote,
escreve Philip Lichterbeck.
*Por Philipp Lichterbeck, da "Coluna Cartas do Rio"
Passaram
os primeiros cem dias do governo Jair Bolsonaro, e uma coisa está clara: o
Brasil não virou uma ditadura, como alguns esquerdistas temiam. Essa é a boa
notícia. A má notícia é: esse governo não teria condições para estabelecer uma
ditadura nem que quisesse. Mas, de alguma forma, isso também é bom.
O
governo age de maneira confusa, aparenta incompetência, lembra João e Maria
perdidos na floresta. Muitos de seus planos parecem ter apenas uma motivação: o
velho, o suposto "socialismo", precisa ser demolido – não à toa
Bolsonaro chama sua eleição de "revolução". Mas não está claro o que
se quer construir na realidade.
Esse
governo não tem ideias. Não tem projetos. Não tem planos. Percorre em meandros
a monotonia de seu radicalismo de direita. Quase que diariamente, ouve-se
quaisquer anúncios semicozidos. Até mesmo a reforma do super-herói da Justiça,
Sergio Moro, parece ter surgido num processo de copia-e-cola.
Sem
falar nas púberes provocações do clã Bolsonaro pelas redes sociais. Em vez de
governar, brinca-se com fogo. Mas o que há de esperar de um presidente
cujo único projeto é acabar com um socialismo que não existe e não existia no
Brasil? Bolsonaro parece cada vez mais um Dom Quixote. Luta contra moinhos de
vento que, nos delírios dele, confunde com gigantes.
Os
Bolsonaro percebem que o projeto deles é vazio (eles têm um instinto
político brutal). Para desviar a atenção, criam conflitos nas redes sociais.
Xingam, agridem e fazem barulho. Mas essa tática funciona só durante um tempo
limitado, e "o deserto das ideias" desse governo já fica óbvio
para quem entende que política é mais que gritaria e slogan de campanha.
Por
isso, esse governo (que foi tão aplaudido pela direita moderada) agora não dá
náuseas apenas à esquerda, mas também aos conservadores que percebem que o
projeto bolsonarista é de destruição, e não de construção. Exemplos:
Escreve
Merval Pereira: "O que não dá para minimizar é a bagunça em que o governo
está metido. A cada vez que o presidente Bolsonaro abre a boca, uma crise se
avizinha."
Rachel
Sheherazade tuita: "Bolsonaro viajou pra Israel. Mourão assume a
Presidência. Como cidadã me sinto mais segura com o general Mourão no comando
da lojinha!"
Ricardo
Noblat chama o chanceler Araújo "com todo respeito" de
"um idiota".
E
Reinaldo Azevedo constata: "Se continuar a fazer bobagem e se perder as
condições políticas de governar, hoje precárias, cai, sim! Os crimes de
responsabilidade já foram cometidos."
Fazer
baderna, todo mundo consegue. Mas governar, assumir responsabilidades, mediar,
é algo para profissionais; é para adultos, pessoas equilibradas, com
empatia e caráter. Nessa enumeração, não são exatamente os Bolsonaro que
vêm à cabeça.
A
sempre perspicaz Eliane Brum escreve: "Jair Bolsonaro mostrou que pretende
governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem
fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de
quem pode urrar nas redes sociais."
Numa
frase: Bolsonaro governa contra o Brasil. Por razões ideológicas, se distancia
da China, o parceiro comercial mais importante do Brasil, e se joga nos braços
do presidente americano Trump feito um amante. Ninguém sabe o que o Brasil vai
lucrar indo para a cama com os EUA, um dos seus principais rivais econômicos
(soja, milho, laranjas, etanol, etc.).
Mas
o presidente simplesmente gosta de Donald Trump. Os americanos, que não são
ingênuos, simplesmente passaram a perna em Bolsonaro. O brasileiro conseguiu
ainda desmerecer seu ministro das Relações Exteriores por ter preferido levar
seu filho, que não ocupa nenhum cargo no governo brasileiro, para a conversa
com Trump na Casa Branca.
Bolsonaro
consegue a façanha de comprar briga com todo mundo ao mesmo tempo. A
determinação de comemorar o golpe militar de 1964 não irritou apenas
esquerdistas e conservadores moderados, mas também os militares que obviamente
não sabiam dos planos. Nos Estados Unidos, ele acusou imigrantes brasileiros de
"não ter boas intenções". Em Israel, ofendeu palestinos e causou
meneios de cabeça entre os israelenses. Também irritou o presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, de quem ele precisa, na verdade, para realizar seus projetos. Por
causa de todo esse jardim de infância, seu "superministro" Paulo
Guedes já falou em renunciar.
Ou
seja, não é à toa que o guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho, aconselhe
Bolsonaro a só governar com seu clã a partir de agora. Todos os outros, segundo
Olavo de Carvalho, são traidores e deveriam "tomar no c*" (seu
xingamento preferido). Dá para notar que o vice-presidente Hamilton Mourão
também estaria entre os traidores.
É
absurdo e triste constatar: mas esse governo, que se acha na missão
quase-religiosa de "salvar a pátria", é tão violento, infantil,
estúpido e desorganizado que os militares até estão parecendo uma opção melhor.
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*Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida
quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com
reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os
jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener
Zeitung. Siga-o no
Twitter em @Lichterbeck_Rio.
Fonte: Publicado na Deutsche Welle
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