Por Leonardo Fernandes
“Eduardo Cunha, você é um gângster”. Foi com essa
frase que o deputado federal Glauber Braga, do Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL) definiu o então presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha,
durante a votação do pedido de abertura do processo de impeachment da
presidenta Dilma Rousseff, no dia 17 de abril de 2016.
A sessão que autorizou o envio do pedido de
impeachment ao Senado Federal ganhou muitos apelidos: “show de horrores”, “dia
da vergonha”, entre outros. Um a um, os 513 deputados e deputadas declaravam
seus votos favoráveis ou contrários ao impedimento da presidenta, em uma sessão
que durou 42 horas.
Nas ruas de todo o país, manifestações dos dois
lados também rodeavam telões que transmitiram ao vivo a votação. José Eduardo
Cardoso, ex-ministro da Justiça que atuou como advogado da presidenta Dilma,
explica como funcionou a estratégia da defesa.
“Nós tínhamos uma avaliação bem realista da
realidade. Nós sabíamos que se fosse aprovado na Câmara, a situação no Senado
ficaria muito difícil de se contornar. No entanto, a gente tinha uma avaliação
de que, como Dilma Rousseff não tinha praticado nenhum delito, nenhum crime de
responsabilidade, e do ponto de vista jurídico aquilo não tinha pé nem cabeça,
nós trabalhamos tanto uma defesa técnica com o melhor nível possível, mas
também buscamos demonstrar à sociedade que aquilo era efetivamente um processo sem
lastro e que caracterizaria, caso consumado, um golpe parlamentar”.
Para o cientista político Pedro Fassoni, o
impeachment da presidenta Dilma não esteve amparado em nenhuma das hipóteses
definidas pelo artigo 85 da Constituição Federal, motivo pelo qual pode ser
entendida como um rompimento da institucionalidade democrática, com graves
consequências históricas para o Brasil.
Fassoni também avalia que, na tentativa de
convencer os setores da oposição a abandonarem a estratégia golpista, o próprio
governo Dilma acabou “cometendo erros”. O que aprofundou a crise de
representatividade e fortaleceu a estratégia golpista.
“A explicação para a queda da Dilma não é
unicausal. Tem vários elementos. De fato teve a própria impopularidade da
presidenta Dilma, que inclusive adotou medidas que contrariaram a sua própria
base. Ela também concordou em promover um ajuste fiscal em 2015, cortando cerca
de 70 bilhões do orçamento, também mudou regras trabalhistas, regras para a
concessão de benefícios, como o seguro-desemprego. Então a gente sabe que o
Partido dos Trabalhadores fez muitas concessões ao capital bancário e ao
latifúndio também”.
Para os brasileiros, cidadãos comuns, trabalhadores
e trabalhadoras assalariadas, aposentados; o que restou do Brasil após o golpe
de estado em 2016? Vejamos alguns dados que podem ajudar a responder essa
pergunta.
O QUE SOBROU DO BRASIL
Para além das consequências institucionais, Fassoni afirma que uma das
consequências da ruptura institucional no Brasil foi a perda do destaque que o país
vinha conquistando no contexto global. E a eleição de Jair Bolsonaro, dois anos
mais tarde, veio aprofundar a má imagem que o país passou a ter no mundo.
“Durante o governo Lula, o Brasil era a bola da vez. O Lula tinha muito
prestígio internacional, era recebido com honras pelos principais chefes de
estado, e era o centro das atenções. Depois do golpe, o Brasil acaba voltando
para uma situação de potência regional e não mais mundial. O governo Bolsonaro
é motivo de chacota na imprensa internacional. A postura de alguns dos seus
ministros, como a Damares [Alves], como o Ernesto Araújo das Relações
Exteriores chega a ser patético. São pessoas que defendem teses completamente
superadas, e isso faz com que o Brasil se torne uma vergonha internacional também”.
Já a economista Marilane Teixeira chama a atenção para as consequências
do golpe para a economia brasileira, que já vinha enfrentando dificuldades.
“Naquele ano mesmo, no ano de 2016, a economia caiu 3,5%. Ela se manteve
em queda no mesmo ritmo do ano anterior. E, mesmo nos anos de 2017 e 2018, a
leve recuperação que teve, que foi em torno de 1,1% a cada ano, é um resultado
pífio, se você considerar a queda anterior. Então, do ponto de vista econômico,
foi um desastre”.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
a qualidade de vida do povo trabalhador esteve em queda livre desde o golpe de
2016. Em 2015, o número de cidadãos em situação de pobreza representava 9,9% da
população, ou seja, 20,4 milhões de pessoas. Já em 2016, número saltou para
53,1 milhões, ou quase 26% da população. Já a pobreza extrema passou de 5% a
7,4% no mesmo período, superando os 13 milhões de brasileiros.
O desemprego foi um dos principais fatores de empobrecimento da
população. Ele saltou de 8,5% em 2015, ou 10 milhões de cidadãos trabalhadores,
para 11,5% ou 12,3 milhões de pessoas desempregadas em 2016. E o número seguiu
aumentando, chegando a mais de 13 milhões em 2017, ou 12,7% da população
economicamente ativa.
A inflação também tratou de corroer o poder
aquisitivo dos brasileiros. O gás de cozinha, produto básico para a maioria das
famílias brasileiras, passou de R$ 54 em média em 2015, para R$ 55,60 em 2016,
chegando a mais de R$ 66 reais em 2017. Já a gasolina, que baliza os preços de
outros produtos devido ao transporte, foi subindo desde o golpe, passando de R$
3,45 a média do litro em 2015, para mais de R$ 4 em 2017.
Os reajustes quase diários dos preços dos
combustíveis e gás de cozinha começaram a ser praticados no governo de Michel
Temer, a partir da nova política de preços da Petrobras, que obedece à variação
do preço do petróleo no mercado internacional, e não mais aos custos de
produção, como funcionava antes do golpe.
Não bastasse as dificuldades econômicas da
população, programas sociais essenciais para o combate à pobreza sofreram
cortes orçamentários drásticos. Um dos mais representativos exemplos do arrocho
orçamentário foi no programa Minha Casa Minha Vida. Em 2015, foram destinados
mais de R$ 8 bilhões para a construção de moradias. Já no ano do golpe, em
2016, a dotação orçamentária foi reduzida a R$ 2,4 bilhões e, em 2017, não
passou de R$ 1,4 bilhão.
Teixeira explica que durante o período de
crescimento econômico, mais precisamente nos dois mandatos do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, foi possível praticar uma política de distribuição
de benefícios entre os vários setores sociais. Mas, diante da crise, a elite
econômica do país passou a disputar o Estado para garantir sua margem de lucro,
em detrimento do bem-estar social.
“Evidentemente estava em disputa um Estado máximo,
um estado de proteção social, um estado de direito, um estado, vamos dizer, aos
moldes do que foi o estado de bem-estar social europeu, um estado indutor do
desenvolvimento, do crescimento econômico. Então, na verdade, é uma disputa
sobre a visão do papel do Estado”.
COM O SUPREMO, COM TUDO
Não foi a primeira vez na história do Brasil que a
mais alta corte do país referenda o rompimento da institucionalidade
democrática e legitima um golpe de estado. Em 1964, após a deposição do então
presidente João Goulart, o Supremo Tribunal Federal (STF) chancelou a
iniciativa dos militares de tomar o poder pela via da força.
Em 2016, não foram poucas as tentativas de acionar
o STF para impedir a consumação de um processo de impeachment sem crime de
responsabilidade comprovado, como conta Cardoso.
“Se em um primeiro momento nós conseguimos evitar
os abusos de Eduardo Cunha, através de algumas ações que foram propostas por
parlamentares, em um segundo momento, é como se o Supremo pura e simplesmente
tivesse tomado uma postura passiva diante daquilo que estava acontecendo. Ou
seja, o Supremo não freou, a meu ver, um processo arbitrário, que se
caracterizou como um desvio de poder e que, repito, ao meu juízo, era um golpe parlamentar.
O Supremo poderia ter feito isso, não o fez”.
A RESISTÊNCIA NUNCA PAROU
Embora não tenha conseguido atingir o objetivo
final – barrar o golpe de estado –, os movimentos sociais democráticos do
Brasil protagonizaram grandes jornadas de luta desde o anúncio da abertura do
processo de impeachment. Sônia Coelho, integrante da Marcha Mundial de
Mulheres, explica que àquela altura, os movimentos de mulheres já percebiam o
caráter misógino dos ataques à presidenta Dilma.
“Aquilo que eles já vinham acumulando, aquele
conservadorismo em relação às mulheres, em relação à família, eles trouxeram
naquele momento contra a Dilma. Eles a tiraram porque, além de todas as
questões políticas, de projeto político que eles queriam derrotar, eles queriam
também derrotar uma primeira mulher presidente do Brasil”, lembra.
As mulheres já haviam enfrentado o então presidente
da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Em setembro de 2015, antes mesmo da
aceitação do pedido de impeachment, organizações de mulheres de todo o país
protagonizaram a “primavera feminista”, contra as pautas regressivas de
direitos, propostas pelo deputado carioca.
“Naquele momento era fundamental fazer resistência,
tanto porque era a Dilma, não só por ser mulher, mas porque ali era a disputa
de um projeto que, para nós mulheres, era fundamental. Em que pese a gente ter,
no início do segundo mandato da Dilma, a gente também foi para a rua para dizer
que a austeridade, para nós mulheres, não servia, aprofundava as desigualdades,
mas que naquele momento era fundamental fazer essa disputa na rua, fazer essa
disputa na sociedade e levar a nossa solidariedade à presidenta”, disse Coelho
emocionada.
DILMA DE CABEÇA ERGUIDA
“Condenaram uma inocente e consumaram um golpe
parlamentar. [...] Apropriam-se do poder por meio de um golpe de estado. O
segundo golpe militar que eu enfrento na vida. […] A partir de agora, lutarei
incansavelmente para continuar a construir um Brasil melhor”. Essas foram
algumas das palavras da presidenta Dilma Rousseff, após a aprovação do
impedimento pelo Senado Federal no dia 31 de agosto de 2016.
O ex-ministro Cardoso se diz um admirador da
presidenta que sobreviveu íntegra a dois golpes de estado.
“Ela [Dilma Roussef] é uma mulher impressionante.
Eu nunca vi – e estive mais de seis anos no ministério --, um único gesto ou
algo que saísse da linha da mais estrita probidade, ética e rigor. Então, é uma
mulher, do ponto de vista ético, de uma conduta irreparável. E, veja, nem toda
essa confusão que é a política brasileira, nem tudo aquilo que sucedeu, não se
alavancou nenhuma denúncia séria contra Dilma Rousseff”.
De cabeça erguida, Dilma se despediu do Palácio da
Alvorada, em Brasília, citando o poeta russo Vladimir Maiakovsky.
“Não estamos alegres, é certo. Mas também porque
razão haveríamos de estar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as
guerras haveremos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma
quilha corta”.
OS PERSONAGENS DO GOLPE
Como e por onde andam os protagonistas do golpe de
estado em 2016? Veja alguns deles:
Romero Jucá
Durante o processo de impeachment, o senador Romero
Jucá exerceu o papel de articulador dos votos favoráveis à cassação do mandato
da presidenta Dilma no Congresso Nacional. Depois de consolidado o golpe,
assumiu o ministério do Planejamento do governo de Michel Temer. Foi exonerado
depois que vazou na imprensa uma conversa entre ele e o ex-presidente da
Transpetro, Sérgio Machado, na qual articulavam o golpe de estado contra a
presidenta Dilma, como forma de “estancar” as investigações da Operação Lava
Jato. Em 2018, candidatou-se à reeleição no Senado pelo estado de Roraima, mas
não foi eleito, ficando em terceiro lugar.
Sérgio Machado
O ex-presidente da Transpetro já foi senador pelo
Partido da Social-democracia Brasileira (PSDB) e atualmente é filiado ao
Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Após renunciar à presidência da
Transpetro, em 2014, foi acusado de envolvimento no escândalo da Petrobras e
investigado pela Operação Lava Jato. Em 2016, fechou acordo de delação premiada
com a Procuradoria-Geral da República em que detalha a sua participação no
esquema de corrupção da estatal. Uma das revelações foi a gravação de uma
ligação telefônica com o então líder do governo no Congresso, o senador Romero
Jucá, no qual planejavam articular um “acordo nacional” para estancar as
investigações da Operação Lava Jato, através de um golpe de estado contra a
presidenta Dilma Rousseff. Depois de pagar um multa de R$ 75 milhões à Justiça,
Machado foi liberado inclusive do uso de tornozeleira eletrônica e vive hoje em
uma mansão localizada em Fortaleza (CE), de frente para o mar.
Michel Temer
Michel Temer permaneceu na Presidência da República
até o dia 31 de dezembro de 2018. No dia 21 de fevereiro de 2019, foi preso
pela força-tarefa da Operação Lava Jato, em um processo que apura
irregularidades na construção da usina nuclear Angra 3. Por decisão do
desembargador Antonio Ivan Athié, foi libertado no dia 25 de fevereiro e
permanece em liberdade. Temer é réu em outros nove inquéritos na Justiça.
Eduardo Cunha
Depois de ter liderado o processo de impeachment da
presidenta Dilma, o deputado federal pelo Rio de Janeiro, Eduardo Cunha (MDB),
foi afastado do cargo no dia 12 de setembro de 2016. Desde o dia 19 de outubro,
permanece preso preventivamente e foi condenado em março de 2017 a 15 anos e
quatro meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e
evasão de divisas.
Jair Bolsonaro
O então deputado federal Jair Bolsonaro saiu
candidato à Presidência da República em 2018. Depois de a Justiça eleitoral
haver inabilitado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a disputar as
eleições, Bolsonaro passou ao primeiro lugar na corrida presidencial, tendo
sido eleito com 57,8 milhões
Janaína Paschoal
A advogada Janaína Paschoal admitiu haver recebido
R$ 40 mil reais para elaborar o pedido de impeachment contra a presidenta Dilma
Rousseff. Nas eleições seguintes, se elegeu deputada estadual pelo Partido
Social Liberal (PSL) da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), tendo sido
a parlamentar estadual mais bem votada da história do estado
FICHA TÉCNICA Reportagem:
Leonardo Fernandes | Edição: Aline Carrijo | Artes: Fernando Badharó e Gabriela
Lucena | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima | Coordenação de
Jornalismo: Daniel Giovanaz e Vivian Fernandes
Fonte: Publicado no Brasil de Fato
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