'Desmascarada a 'República de Curitiba', a questão
crucial agora é revigorar a democracia e repactuar um projeto de
desenvolvimento soberano, em meio à desordem do mundo neoliberal'
Por Joaquim Palhares
Tornou-se límpido como água de
mina: a engrenagem posta em movimento em 2014 com o nome de Lava Jato,
autodenominada 'a maior investigação de corrupção da história', servia de biombo
a uma farsa jurídica, cujos detalhes emergiram agora de forma devastadora nos diálogos
de bastidores da operação revelados pelo Intercept.
Gravações amplamente
compartilhadas pela sociedade nesse momento soam como diálogos de um filme de
Costa Gavras, o mestre do cinema político.
Um comando secreto, liderado por
um juiz de província americanófilo e direitista, arquiteta a prisão do maior
líder popular da história brasileira, que encabeça a corrida à presidência da
República e precisa ser detido para não levar a esquerda ao poder pelo quinto
mandato consecutivo.
Todos sabiam que era assim. Mas
agora a hipocrisia e o cinismo perderam o chão das aparências.
Mais que um filme, a realidade
política dos últimos cinco anos avulta aos borbotões para desmentir a narrativa
dominante. Aliás, como sempre alertaram os críticos da República de Curitiba.
Entre eles perfila Carta Maior,
que reunira num Especial (Dossiê) uma panorâmica das
perdas e danos destes cinco anos e dos desafios que eles colocam ao resgate
progressista da nação brasileira.
Não será uma empreitada para
nostalgias ou ilusões.
Estamos diante de um dos mais
fulminantes processos de desmonte econômico de um país com simultânea
desidratação do seu sistema democrático o que, vale dizer, obstruiu os já
frágeis canais de participação da vontade popular sobre os destinos da
sociedade, destruindo o nosso bem mais precioso. A nossa soberania.
É uma reprise do que já aconteceu
em Cuba, Chile, Irã, Nicarágua, Cuba, Afeganistão, Iraque, Síria, Iemen,
Somália, Líbia, Níger e Venezuela, em todos os casos fortemente apoiados pela
grande imprensa americana e seus parceiros nacionais.
Durante um quinquênio, um
moto-contínuo de sobressaltos cuidadosamente injetados na opinião pública com o
denso lubrificante de um jornalismo cúmplice, colocou a democracia e a
subjetividade nacional de joelhos.
A quinta maior demografia do
planeta, oitava maior economia do mundo, detentora das maiores reservas de
petróleo descobertas no planeta no século XXI, foi sacudida e fragilizada até a
prostração.
Restou uma montanha desordenada de
reputações em ruína. A ociosidade industrial alia-se ao desemprego alarmante. O
empobrecimento que invadiu os lares da classe média trouxe de volta a fome às
periferias. A fragilização do Estado alavanca um voraz processo de
desemancipação social com a supressão de direitos e da autoestima, fechando o
cerco da orfandade social e nacional.
A deriva deixa clara uma
determinação de estripar todas as dimensões da soberania, sem a qual não há
projeto de desenvolvimento, nem democracia que se sustentem.
Nos dentes da engrenagem
expropriadora foram mastigados o PT e demais organizações progressistas.
Estatais e bancos públicos que dão
escala econômica e estratégica às políticas de interesse nacional definham.
Grandes empresas que detém a
expertise necessária aos projetos estruturantes de infraestrutura agonizam em
desmanche criminoso.
O país aguarda ansioso que o
extraordinário trabalho jornalístico do Intercept revele os conteúdos dos
acordos de leniência assinados por "livre e espontânea pressão" e
produzidos ao arrepio da Lei e das devidas autorizações dos órgãos públicos do
Estado brasileiro e sob forte coação prisional.
O posicionamento internacional do
país amesquinhou-se num alinhamento servil aos ditames norte-americanos.
Uma afinada aliança entre a mídia,
a escória, o judiciário e a plutocracia local e global liquidou o abrigo de
identidade entre o povo e a nação e legitima a extinção dos laços e obrigações
da nação em relação ao seu povo, sobretudo os mais humildes.
O país todo foi ardilosamente
colocado sob a regência de um único poder ordenador: o mercado, sobretudo o seu
braço financeiro internacionalizado.
O governo age como uma tropa de
ocupação orientada à predação e ao saque do próprio povo.
O barco convulsionado flerta com o
naufrágio sob a batuta de um comodoro desequilibrado, adestrado em tuitar
tagarelices e insultos, mas incapaz de liderar e construir.
Sua missão é outra.
Bolsonaro foi escolhido pela
desastrosa aptidão para rebaixar, agredir, destruir, desarticular e promover a
desordem que torna um povo órfão e a nação desossada.
Tombam um a um todos os
contrapontos institucionais, sociais e econômicos erguidos secularmente como
limite à ganância omnívora da elite que produziu uma das sociedades mais
desiguais do planeta, aqui, 28% da riqueza está nas mãos do 1% dos
endinheirados, contra média mundial de 22%, lembra Thomas Piketty.
O alvo zero da gula atual é a
nossa soberania, sem bombas, sem tropas adotam o modelito da Guerra Híbrida,
contra as nações e o Lawfare contra personalidades.
Lula e a Carta Cidadã de 1988 são
os grandes obstáculos. A nossa constituição nunca foi aceita pelas elites,
promulgada em 5 outubro de 1988, desde logo foi atacada, principalmente durante
os oito anos de governo FHC.
A vitórias de Lula e do PT, em
2002, 2006, 2010 e 2014 jamais foi aceita pelo conservadorismo e pelo grande
capital nacional e internacional.
A Constituinte que encerrou
a ditadura jamais foi digerida pelos conservadores por ter nascido a contrapelo
da ascensão neoliberal no mundo, graças à força acumulada pelas ruas na luta
por democracia .
Destruí-la dá sentido funcional à
aberração elevada ao poder em 2018.
Lembremo-nos,
'desconstitucionalizar' a economia era a pedra angular também do programa presidencial
do tucano Geraldo Alkmin, cujo 'posto Ipiranga' chamava-se Pérsio Arida.
Depois das quatro tentativas
fracassadas do PSDB de completar o serviço iniciado por Fernando Henrique
Cardoso, e na iminência de um novo revés nas urnas de 2018, decidiu-se convocar
as estrebarias.
Os diálogos agora revelados pelo
Intercept mostram a ação coordenada das cocheiras nesse mata-leão no pescoço da
história.
A ressignificação constrangedora
da palavra Brasil no ambiente internacional, resulta da ecumênica percepção,
agora documentada, de uma regressão a galope minuciosamente planejada e imposta
a uma sociedade aturdida e manipulada por quem deveria informa-la e
esclarece-la com isenção.
Antes de ser a profilaxia ética
avocada por torquemadas, descortina-se assim de forma cristalina a ação de um
"condomínio" criminoso e demolidor, formado pela aliança da mídia com a
escória, o dinheiro, o sistema jurídico, setores militares e o Departamento de
Estado norte-americano.
É isso que mostram os diálogos
prontos para o filme do Costa Gravas revelados agora pelo Intercept.
Não há espaço para a ingenuidade.
Nada disso se faria sem a
cobertura da espionagem, o respaldo militar e econômico do grande interesse
norte-americano em subjugar a maior economia ocidental em luta pelo
desenvolvimento, fortalecida pela descoberta das gigantescas reservas do
pre-sal e do horizonte de soberania econômica e tecnológica que elas propiciam.
O intento do saque devastador
requer ilegalidade e violência.
A Lava Jato agiu cirurgicamente
como um pistoleiro de aluguel.
Desencadeou a emboscada no
lusco-fusco das fragilidades quando um ciclo do desenvolvimento havia se
esgotado e outro teria que ser repactuado.
Entre as escolhas disponíveis a
supremacia do mercado sobre os interesses sociais e nacionais dificilmente
teria a preferência das urnas.
Como não a teve desde 2002.
E as pesquisas indicavam não teria
também em 2018.
É forçoso reconhecer, porém, o
condomínio golpista foi bem sucedido, pelo menos até aqui.
O desmonte da nação pode ser
documentado em múltiplas frentes, erguendo uma muralha de entulho que secciona
as linhas de passagem entre o presente insuportável e a reinvenção do futuro
brasileiro.
O conjunto coloca obstáculos
estruturais novos às forças democráticas e progressistas determinadas a
resgatar a soberania da nação e repactuar o seu desenvolvimento.
A nostalgia do ciclo anterior não
serve de resposta às novas cobranças da história.
O mundo vigente entre 2002 e 2014
não existe mais.
A geopolítica foi alterada; a
globalização está em xeque; a agenda conservadora é uma força afluente
destrutiva e violenta.
Tentar repetir o ciclo exitoso
anterior, nos mesmos moldes, apenas reafirmará o seu esgotamento em um novo
colapso antecipado, possivelmente arrematado por um golpe ainda mais violento.
A determinação profunda desse
acirramento dos conflitos não pode ser subestimada.
A humanidade toda sofre os abalos
da crise de esgotamento do projeto neoliberal imposto a um planeta esmagado em
desequilíbrios sociais e ambientais sistêmicos.
O vórtice da tempestade é a
desordem financeira.
Um estoque sem igual de riqueza
fictícia arde nas mãos dos mercados em todo o mundo em busca de abrigos de mais
valia para proceder à transfusão capaz de evitar a desvalorização abrupta, da
qual 2008 foi um prenúncio.
Reconduzir a riqueza financeira
aos trilhos da produção e da emancipação social é um dos novos requisitos da
soberania para o desenvolvimento.
O objeto em questão empenha-se
neste momento, aqui e em todo mundo, a uma dança das cadeiras ensandecida.
Não há contrapartida de lastro
material que acomode a monstruosa ciranda especulativa.
A montanha de direitos de saque
sobre a riqueza planetária equivale hoje ao dobro do PIB mundial: US$ 170
trilhões contra US$ 80 trilhões, respectivamente.
E não para de crescer.
Em contrapartida, a fatia do PIB
norte-americano destinada ao trabalho, por exemplo, caiu de quase 69%, antes de
crise de 2008, para 66,4% agora.
Que isso ocorra no capitalismo
mais forte do planeta, onde a economia cresce há dez anos e ostenta uma taxa de
desemprego (visível) a mais baixa em meio século (3,6%), só faz confirmar a
atual natureza desagregadora da lógica dos livres mercados que se quer impor
aqui a ferro e fogo.
A incerteza, a angústia, o
desemprego embutidos nesse paradoxo que asfixia a classe média do campo e das
cidades, explicam o crescimento da xenofobia, do nacionalismo, dos líderes
extremistas e do vento fascista que sopra em todas as latitudes.
As forças democráticas e
progressistas brasileiras não podem subestimar as responsabilidades
organizativas e programáticas que esse divisor coloca.
A principal delas é recuperar a
coerência entre o projeto de democratização social para o Brasil e a
contrapartida de aglutinação dos recursos necessários à retomada do investimento
produtivo, o que requer o enfrentamento do poder financeiro, só viável com a
nucleação do poder popular que gere a força e o consentimento amplo para
resgatar a soberania e a credibilidade à luta pelo desenvolvimento neste longo
amanhecer do século XXI.
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