Os zumbis não têm racionalidade. A pena
que eles impõe aos humanos não depende de qualquer procedimento. Os candidatos
à serem infectados e/ou devorados não podem esperar um julgamento justo e
isento.
O Direito Penal moderno, ou seja, aquele
que foi sendo lentamente substituindo o que existia durante a Idade Média, se
caracteriza pelo respeito aos seguintes princípios gerais: prévia definição
legal do ato considerado criminoso; presunção de inocência do acusado; respeito
ao devido processo legal; acusação ofertada de maneira pública e impessoal por
um agente do estado; direito de defesa; colheita de provas mediante o
contraditório; inexistência de juízo de exceção; processo conduzido e
sentenciado por juiz competente e imparcial; direito de recorrer da condenação;
cumprimento da pena somente depois do trânsito em julgado; inexistência de
penas corporais, cruéis ou infamantes. Todos esses princípios foram assegurados
de uma maneira ou de outra pela Constituição Federal brasileira.
Os roteiristas, produtores e diretores
dos filmes da saga Resident Evil 1 a 6 não se preocuparam especificamente com
questões de Direito Penal e de Direito Processual Penal. Mesmo assim, farei um
pequeno desvio utilizando os elementos centrais desses filmes para refletir
sobre o que está ocorrendo no Brasil.
Em Resident Evil existem basicamente
dois tipos de personagens: humanos e zumbis. As relações entre eles não são
reguladas por qualquer norma geral e abstrata. A convivência pacífica entre os
dois grupos é impossível. A pena para um humano que cai nas mãos dos zumbis é
ser infectado ou devorado. Para se salvar, os humanos podem fazer duas coisas:
fugir ou matar zumbis.
Os zumbis não têm racionalidade. A pena
que eles impõe aos humanos não depende de qualquer procedimento. Os candidatos
à serem infectados e/ou devorados não podem esperar um julgamento justo e
isento. Se forem infectados eles irão inevitavelmente infectar e/ou devorar
seus amigos e parentes, razão pela qual a pena no caso de Residente Evil sempre
ultrapassa a pessoa do condenado.
No universo de Resident Evil, a
violência é o único meio de defesa dos humanos que não querem ou não podem
fugir. Para continuar vivos e saudáveis eles podem matar e mutilar os
mortos-vivos. Mas aqui existe uma pegadinha. Sob a ótica do Direito Penal,
ninguém pode dizer que os humanos cometem crimes ou que eles impõe penas
corporais, cruéis e infamantes aos zumbis. Afinal eles já estão mortos e o
Direito Penal só se ocupa deles num caso: o dos crimes descritos nos arts. 209
a 212 do Código Penal, mas nesses casos o bem juridicamente tutelado não diz
respeito ao próprio morto, pois ele não é titular de direitos.
Feito o desvio, voltemos ao assunto que
realmente interessa.
A revelação feita pelo The Intercept de
que Deltan Dellagnol e Sérgio Moro conspiraram para perseguir, condenar e
prender Lula não é apenas preocupante. Ela é escandalosa. Dentro de suas
esferas de atuação, cada um deles tinha o dever funcional de cumprir e fazer
cumprir os princípios constitucionais acima mencionados para, assim, garantir a
validade do processo penal e a higidez da condenação ou absolvição imposta ao
réu. O processo penal não é um brinquedo político que pode ser utilizado
segundo os critérios partidários, ideológicos ou religiosos pelo procurador e
pelos juiz de direito.
O que causa mais escândalo nesse caso,
entretanto, é a tentativa dos amigos dos heróis lavajateiros de justificar a
conduta deles. Suspeito de ter sido criminosamente beneficiado pelo juiz Sérgio
Moro, Fernando Henrique Cardoso diz que ele não cometeu um pecado mortal. Além
de não ter isenção para falar sobre o caso, o ex-presidente tucano está
tentando transformar em debate moral vulgar uma questão jurídica de relevância
crucial não apenas para o futuro de Lula, mas também para a prática processual
penal no Brasil.
Ainda mais preocupante é a existência de
centenas de juízes que defenderam Sérgio Moro e Deltan Dellagnol alegando que o
“debate interinstitucional” é possível ou necessário. Nada é mais necessário
para o processo penal que a garantia de equivalência de armas. Se o procurador
e o juiz conspirarem para prejudicar o réu três coisas ocorrem: 1º o órgão de
acusação perde sua autonomia funcional; 2º o juiz deixa de ser imparcial, pois
tratou de maneira distinta acusação e defesa; 3º o processo é absolutamente
nulo em razão da inexistência ou ineficácia do direito de defesa.
FHC é um político. Portanto, ele pode
falar o que bem entender sobre o assunto. Mas isso não se aplica aos juízes que
apoiaram os heróis lavajateiros. Ao dizer publicamente que consideram normal um
que a legislação considera abusivo e potencialmente criminoso eles levantaram
suspeitas graves sobre suas próprias condutas profissionais. Essa questão é tão
séria que deve ser objeto de debate e resolução no Conselho Federal da OAB. Me
parece que será indispensável investigar de maneira detalhada cada um dos processos
que os referidos juízes julgaram nos últimos anos. Afinal, eles também podem
ter proferido sentenças tão nulas quanto a que Sérgio Moro produziu no caso do
Triplex.
O perigo a que o Brasil se expõe se a
conspiração de Sérgio Moro e Deltan Dellagnol no caso do Triplex for
minimizada, legitimada e transformada em prática corriqueira me parece
evidente. Isso acarretaria a penetração do Direito Penal e do Direito
Processual Penal por características típicas da série de filmes Resident Evil.
Quem seriam os zumbis na saga da nova
justiça criminal brasileira? Perseguidos insaciavelmente por juízes e
procuradores que não estariam obrigados a respeitar quaisquer regras e que
poderiam impor penas sem observar o devido processo legal e/ou respeitar o
direito de defesa, os réus brasileiros obviamente não poderiam ser equiparados
aos mortos-vivos de Resident Evil.
Fonte: Publicado no Jornal GGN
Nenhum comentário:
Postar um comentário