"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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sexta-feira, 28 de junho de 2019

Resident Evil e a nova justiça criminal brasileira, por Fábio de Oliveira Ribeiro


Os zumbis não têm racionalidade. A pena que eles impõe aos humanos não depende de qualquer procedimento. Os candidatos à serem infectados e/ou devorados não podem esperar um julgamento justo e isento.

O Direito Penal moderno, ou seja, aquele que foi sendo lentamente substituindo o que existia durante a Idade Média, se caracteriza pelo respeito aos seguintes princípios gerais: prévia definição legal do ato considerado criminoso; presunção de inocência do acusado; respeito ao devido processo legal; acusação ofertada de maneira pública e impessoal por um agente do estado; direito de defesa; colheita de provas mediante o contraditório; inexistência de juízo de exceção; processo conduzido e sentenciado por juiz competente e imparcial; direito de recorrer da condenação; cumprimento da pena somente depois do trânsito em julgado; inexistência de penas corporais, cruéis ou infamantes. Todos esses princípios foram assegurados de uma maneira ou de outra pela Constituição Federal brasileira.

Os roteiristas, produtores e diretores dos filmes da saga Resident Evil 1 a 6 não se preocuparam especificamente com questões de Direito Penal e de Direito Processual Penal. Mesmo assim, farei um pequeno desvio utilizando os elementos centrais desses filmes para refletir sobre o que está ocorrendo no Brasil.

Em Resident Evil existem basicamente dois tipos de personagens: humanos e zumbis. As relações entre eles não são reguladas por qualquer norma geral e abstrata. A convivência pacífica entre os dois grupos é impossível. A pena para um humano que cai nas mãos dos zumbis é ser infectado ou devorado. Para se salvar, os humanos podem fazer duas coisas: fugir ou matar zumbis.

Os zumbis não têm racionalidade. A pena que eles impõe aos humanos não depende de qualquer procedimento. Os candidatos à serem infectados e/ou devorados não podem esperar um julgamento justo e isento. Se forem infectados eles irão inevitavelmente infectar e/ou devorar seus amigos e parentes, razão pela qual a pena no caso de Residente Evil sempre ultrapassa a pessoa do condenado.

No universo de Resident Evil, a violência é o único meio de defesa dos humanos que não querem ou não podem fugir. Para continuar vivos e saudáveis eles podem matar e mutilar os mortos-vivos. Mas aqui existe uma pegadinha. Sob a ótica do Direito Penal, ninguém pode dizer que os humanos cometem crimes ou que eles impõe penas corporais, cruéis e infamantes aos zumbis. Afinal eles já estão mortos e o Direito Penal só se ocupa deles num caso: o dos crimes descritos nos arts. 209 a 212 do Código Penal, mas nesses casos o bem juridicamente tutelado não diz respeito ao próprio morto, pois ele não é titular de direitos.

Feito o desvio, voltemos ao assunto que realmente interessa.

A revelação feita pelo The Intercept de que Deltan Dellagnol e Sérgio Moro conspiraram para perseguir, condenar e prender Lula não é apenas preocupante. Ela é escandalosa. Dentro de suas esferas de atuação, cada um deles tinha o dever funcional de cumprir e fazer cumprir os princípios constitucionais acima mencionados para, assim, garantir a validade do processo penal e a higidez da condenação ou absolvição imposta ao réu. O processo penal não é um brinquedo político que pode ser utilizado segundo os critérios partidários, ideológicos ou religiosos pelo procurador e pelos juiz de direito.

O que causa mais escândalo nesse caso, entretanto, é a tentativa dos amigos dos heróis lavajateiros de justificar a conduta deles. Suspeito de ter sido criminosamente beneficiado pelo juiz Sérgio Moro, Fernando Henrique Cardoso diz que ele não cometeu um pecado mortal. Além de não ter isenção para falar sobre o caso, o ex-presidente tucano está tentando transformar em debate moral vulgar uma questão jurídica de relevância crucial não apenas para o futuro de Lula, mas também para a prática processual penal no Brasil.

Ainda mais preocupante é a existência de centenas de juízes que defenderam Sérgio Moro e Deltan Dellagnol alegando que o “debate interinstitucional” é possível ou necessário. Nada é mais necessário para o processo penal que a garantia de equivalência de armas. Se o procurador e o juiz conspirarem para prejudicar o réu três coisas ocorrem: 1º o órgão de acusação perde sua autonomia funcional; 2º o juiz deixa de ser imparcial, pois tratou de maneira distinta acusação e defesa; 3º o processo é absolutamente nulo em razão da inexistência ou ineficácia do direito de defesa.

FHC é um político. Portanto, ele pode falar o que bem entender sobre o assunto. Mas isso não se aplica aos juízes que apoiaram os heróis lavajateiros. Ao dizer publicamente que consideram normal um que a legislação considera abusivo e potencialmente criminoso eles levantaram suspeitas graves sobre suas próprias condutas profissionais. Essa questão é tão séria que deve ser objeto de debate e resolução no Conselho Federal da OAB. Me parece que será indispensável investigar de maneira detalhada cada um dos processos que os referidos juízes julgaram nos últimos anos. Afinal, eles também podem ter proferido sentenças tão nulas quanto a que Sérgio Moro produziu no caso do Triplex.

O perigo a que o Brasil se expõe se a conspiração de Sérgio Moro e Deltan Dellagnol no caso do Triplex for minimizada, legitimada e transformada em prática corriqueira me parece evidente. Isso acarretaria a penetração do Direito Penal e do Direito Processual Penal por características típicas da série de filmes Resident Evil.

Quem seriam os zumbis na saga da nova justiça criminal brasileira? Perseguidos insaciavelmente por juízes e procuradores que não estariam obrigados a respeitar quaisquer regras e que poderiam impor penas sem observar o devido processo legal e/ou respeitar o direito de defesa, os réus brasileiros obviamente não poderiam ser equiparados aos mortos-vivos de Resident Evil.



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