Por Eugênio Aragão
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A situação ficou complicada para Sergio Moro |
Quem acompanhava as conversas
internas do MPF na rede @Membros sabia, desde sempre, da descarada politização
do ambiente corporativo, marcado por profunda “petefobia”,
expressão que usei numa entrevista em 2011, logo após tomar posse como
corregedor-geral do órgão. O tom militante e de desqualificação de quem pensava
diferente era ali uma constante. Nem ministros do STF saíam incólumes, sendo
alvos de chacota e caçoada. Como corregedor-geral, cheguei a mandar aviso à
rede, advertindo que os deveres de urbanidade e de decoro também se aplicavam
às comunicações internas.
A mim não surpreendeu o teor das
mensagens trocadas por personagens da famigerada Operação Lava-Jato e o juiz de
piso Sérgio Moro, por mais que choca outsiders. Essas
mensagens mostram claramente a promiscuidade que prevalece na fusão das
atividades de investigar, acusar e julgar nos processos dessa operação. Temos
ali promotores que se portam feito meganhas e um juiz que é acusador, todos
articulados num projeto político de “limpar o Congresso” e de impedir que o PT
fosse vitorioso nas eleições presidenciais de 2018.
Agora que o caldo derramou e ficou
provado o que muita gente desconfiava – a persecução seletiva de atores
políticos – os promotores desesperados se apressam em se fazer de vítimas de
“uma ação criminosa” de invasão de seus celulares usados “para comunicação
privada” e “no interesse do trabalho”. Mostram revolta contra o que denominam
“violação da esfera privada”.
Não vou por ora examinar o conteúdo
vazado, por si só de extrema gravidade no que se refere à conduta de juiz e
promotores. Vou me ater, aqui, a duas questões apenas: a suposta invasão
“criminosa” de seus dispositivos de comunicação e a confusão entre ações de
investigar, acusar e julgar, no caso do triplex do Guarujá.
Um aspecto parece ter passado
despercebido no noticiário sobre o vazamento: os celulares usados por Moro e
Dallagnol eram de serviço. Juízes e membros do ministério público têm uma
mordomia pouco divulgada. Todos recebem, à custa do erário, um iPhone, um iPad e/ou
um laptop para uso no exercício de suas funções. Recebem, também, uma cota
mensal de mais ou menos quatrocentos reais em chamadas e transferência de
dados. É prática geral entre esses atores usar o celular de serviço para fins
privados também, dentro dessa cota. Somente chamadas de roaming internacional
precisam ser justificadas.
Falar em direito à privacidade em
dispositivo de comunicação de serviço é impróprio. O patrão tem direito de
saber do uso que dele é feito por seus empregados. No caso do servidor público,
o patrão somos nós, os que, com os impostos que pagamos, custeiam mais essa
sinecura. Somente segredos de estado podem nos ser subtraídos do conhecimento.
Mas, atos ilícitos, como a conspiração política contra a soberania popular, a
visar o impedimento da vitória de um dos candidatos no pleito presidencial,
seguramente não podem se revestir dessa qualidade secretiva.
Há tempos tenho chamado a atenção
de colegas para o fato de que a divulgação de conteúdos de conversas da lista
@membros não configura violação de privacidade, a uma porque tal lista é
hospedada em servidor institucional; a outra porque essas conversas tratam de
matéria de interesse público, não sendo lícito a procuradores portarem-se,
nesse âmbito, de forma conspirativa. A reação da turba virtual, diante desse
aviso, sempre foi histriônica. Alguns até avisam em suas mensagens que a
divulgação de seu conteúdo poderia dar margem à violação de sigilo funcional.
Só rindo mesmo: como esse povo gosta de se fazer de importante! Falam um monte
de asneiras sobre atores públicos e acham que podem se escudar na lei para se
tornarem inatacáveis.
No celular funcional não é
diferente. Seu uso deveria ser restrito a atos de serviço, não se estendendo à
prática de ilícitos ou de comunicação pessoal. Alguns desses atos de serviço
até podem se revestir de natureza confidencial, apesar de não ser muito
inteligente praticá-los através de dispositivo sujeito à invasão e muito menos
conservá-los no buffer por mais de dois anos! Quem assim procede está conscientemente
arriscando o vazamento de sua comunicação reservada e, com isso, talvez seja
ele ou ela que devesse ser responsabilizado por dolo eventual na publicização
de comunicação funcional confidencial.
Não há, pois, legitimidade no
argumento da vitimização dos procuradores e do juiz de piso pelo ataque a seus
celulares. Mas, além disso, o chororô da nota do ministério público em
decorrência de publicação, pelo sítio do Intercept, peca contra o princípio
do “ne venire contra factum proprium” e,
assim, é mais uma prova de falta de boa fé da turma da Operação Lava-Jato. É
que, quando criminosamente tornaram público diálogo telefônico entre a
presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, às vésperas da posse deste no cargo de
ministro-chefe da Casa Civil, procuradores e magistrado – principalmente este
último – se exculparam no interesse público do conteúdo para mandar a lei às
favas.
E as provas sobre conspirações de
Moro e Dallagnol contra o poder legislativo que queriam “limpar” ou contra as
eleições presidenciais que queriam conduzir de forma a que não se elegesse
Haddad, não são elas, por acaso, de interesse público? Ainda mais quando
encontradas em celulares funcionais?
Não há desculpa. Pode até ser que,
na prática recorrente dos tribunais, de blindarem Sérgio Moro, digam que as
conversas vazadas não servem para condenar juiz e promotores na esfera penal,
mas, seguramente, elas bastam para colocar em xeque a persecução penal contra
Lula e a legitimidade do pleito presidencial de 2018.
No que diz respeito à promiscuidade
da relação entre o ministério público e o juiz, revelada pelo vazamento de suas
comunicações, passou da hora de repensar a proximidade entre acusação e
magistratura no Brasil.
Quando atuava como
subprocurador-geral da república junto ao STJ e, até mesmo antes, quando atuava
como procurador regional no TRF da 1ª Região, incomodava-me profundamente o
nosso papel, do MPF, nas sessões, sentados ao lado do presidente, com ele
podendo até cochichar, a depender da empatia recíproca. Enquanto o advogado
fazia sua sofrida sustentação oral da tribuna, não raros eram comentários
auriculares entre juiz e procurador. Depois, o procurador era convidado a
saborear o lanchinho reservado dos magistrados, em que os casos eram
frequentemente comentados. Já os advogados ficavam do lado de fora, impedidos
de participar dessa festa do céu. Produzia-se, assim, a mais descarada
assimetria entre a defesa e a acusação.
O argumento dos colegas era de que
o ministério público ali não era parte e, sim, fiscal da lei. Façam-me rir! Do
ponto de vista estritamente dogmático, essa cisão entre os papéis do ministério
público é ilusória, já que o órgão se rege pelos princípios institucionais da
unidade e da indivisibilidade (art. 127 da Constituição). O ministério público
é sempre parte e custos legis concomitantemente.
Do ponto de vista prático, são pouquíssimos os procuradores que se imbuem do
papel de fiscal imparcial. O punitivismo há muito tempo transformou a grande
maioria em ferrabrás mecanizada. Não raro fui criticado por meus pares de dar
parecer favorável à concessão de ordem de habeas corpus contra atuação de
colega em primeiro grau! “Como assim? Ministério público acolhendo ordem de
habeas corpus? Não pode!!!”.
Nesse contexto, é preciso barrar
essa proximidade entre promotores e juízes, tirando os primeiros do pódio do
magistrado, para colocá-los no nível das partes. Nos tribunais, está na hora de
tirá-los do lado do presidente. Devem ocupar a tribuna para suas sustentações e
voltar a seus gabinetes depois dessa tarefa, para dar andamento aos processos
sob sua responsabilidade. Não faz sentido nenhum, em plena era do processo
acusatório, dar destaque ao acusador, em detrimento da paridade com os
advogados.
Deltan Dallagnol mostrou o quanto é
deletério, para o devido processo legal e para o julgamento justo, a confraria
com Sérgio Moro. Ficavam promotor e juiz trocando figurinha sem participação da
defesa. O juiz se dava o direito de palpitar na estratégia investigativa sobre
crimes que depois viria a julgar e o promotor deixava o juiz “à vontade” para
indeferir seus pleitos, se não combinasse com a estratégia comum. Um escândalo,
tout court.
Esperam-se consequências dessas
revelações, pois, muito mais do que a profunda injustiça da prisão de Lula por
uma condenação “arreglada” entre magistrado e acusação, estamos diante de
evidências de manipulação eleitoral. Ou o país tira lições dessa atuação
criminosa de atores judiciais, ou pode sepultar sua democracia representativa,
porque já não haverá mais respeito pelas instituições que devem protegê-la.
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