O moralista, em regra, é imoral.
Ele aplica aos outros juízos que não aplica a si mesmo. Em se tratando de juiz,
o moralismo é ainda mais grave porque é criminoso.
*Por Aldo Fornazieri
Cada um de nós,
no nosso pensar, tem a responsabilidade de decidir o que é certo e o que é
errado. Neste terreno, nos situamos num ilimitado relativismo moral subjetivo.
Quando agimos, a nossa moral adquire um caráter objetivo e, externamente, ela
se submete a duas considerações: 1) ao juízo moral dos outros, seja ele
individual, seja aquele social, conformado na moral do senso comum; 2) ao do
direito, sacramentado nas leis e na Constituição, que conformam a moralidade
objetiva. Assim, a moralidade de uma sociedade só adquire realidade e
objetividade mediante as leis, as instituições e a Constituição.
Quando um juiz
julga, ou quando um agente público age em nome do Estado, não podem adotar como
critério do juízo e da ação a sua moralidade subjetiva, aquilo que ele
considera certo ou errado. Aquilo que ele considera certo ou errado ponde não
ser considerado certo ou errado por muitas outras pessoas e pode estar em
desacordo com as leis e a Constituição. Isto pode configurar um delito, um ato
criminoso. Foi precisamente isto o que Sérgio Moro, na sua antiga condição de
juiz, o procurador Dallagnol e outros integrantes da Lava Jato fizeram. As
revelações do Intercept dissiparam qualquer dúvida a este respeito.
Sérgio Moro não
julgou apenas a partir de suas convicções morais próprias e contra a
Constituição. Julgou também a partir de um interesse político e material
pessoal e de grupo ao estabelecer um conluio ilegal e imoral com Dallagnol e
outros integrantes da Lava Jato, como provaram as mensagens divulgadas pelo
Intercept. Desta forma, existem duas considerações a fazer.
A primeira se
refere ao moralismo. O moralismo de Moro está publicamente estabelecido por
declarações, nos autos, em manifestações públicas e em artigos que ele
escreveu. O moralista, em regra, é imoral. Ele aplica aos outros juízos que não
aplica a si mesmo. Em se tratando de juiz, o moralismo é ainda mais grave
porque é criminoso. O moralismo nasce de uma vontade absoluta: julgar os outros
e querer conformar o mundo a partir da vontade exclusiva do moralista,
desconsiderando a realidade objetiva e a alteridade. Assim, o moralista está
possuído por uma vontade totalitária – a de fabricar o mundo e as relações
humanas segundo sua vontade. Quando um juiz julga por critérios moralistas,
pratica um ato totalitário, executa uma excepcionalidade que está fora do
Estado de Direito.
Já se escreveu
muito sobre o Estado de exceção. Um dos aspectos desse Estado é fomentado pelo
Judiciário: julga-se a partir de critérios emanados do juízo moral do juiz, da
interpretação violentada da lei segundo interesses e objetivos políticos e da
pressão da opinião pública. Estes juízos, de modo geral, fogem das leis, da
Constituição e do direito. Moro incorreu em todas essas práticas, golpeando a
democracia, o Estado de Direito e a Constituição. Ele antecedeu Bolsonaro na
sanha destrutiva da institucionalidade, da legalidade e da constitucionalidade
do país.
A imoralidade de
Moro é avassaladora. Condenou Lula por corrupção como forma de camuflar os seus
desejos e suas práticas corruptas. Erigiu-se como paladino da moral e herói do
país enquanto recebia ganhos salariais muito acima do teto constitucional e era
beneficiário do inescrupuloso, indecoroso e criminoso auxílio-moradia. Os
privilégios públicos sempre foram e são uma forma de corrupção. Moro era um
corrupto pelos seus privilégios e se corrompeu ao violar os princípios legais e
constitucionais no julgamento de Lula.
O juiz
moralista, ao julgar pela sua vontade totalitária, privatiza a vontade
universal para si e age sempre como se ele fosse o representante de todos.
Eleva sua vontade ao trono do país e pela sua reputação de herói, construída
através da manipulação da opinião pública, pretende que ninguém lhe oponha
resistência, nem mesmo os poderes superiores (no caso o STF, acovardado pela
pressão popular, sendo que alguns ministros concordavam com as ideias
criminosas de Moro). Essa vontade totalitária, que no fundo é uma vontade de
morte, de anular e suprimir o outro, se espalhou de forma significativa no
Judiciário e foi fatal para levar ao colapso os mecanismos de limites e travas
constitucionais daquele poder. Essa fúria destruidora de Moro, do MP e de
outros juízes, se transmutou para o Executivo na figura de Bolsonaro, que não
se cansa de destruir mecanismos garantidores de direitos e os precários avanços
civilizatórios.
Bolsonaro é a
continuidade daquilo que Moro encarnava. Os dois juntos, somados a outros
coadjuvantes, no delírio de suas presunções de que são a manifestação da
verdade, quando não da vontade divina, se comprazem em perseguir, em destruir e
em praticar o mal. Ao marcharem sobre os cadáveres das leis, das instituições e
dos direitos que vão destruindo, Moro e Bolsonaro não deixarão nenhum legado
positivo. Não podem deixar legados positivos governantes que enaltecem as armas
e desprezam os livros; que estimulam o ódio e recusam o diálogo; que semeiam a
discórdia e repudiam o convívio democrático; que se movem pelo impulso e
assassinam a razão; que elogiam a tortura e sentem repulsa pelos direitos
humanos; que amam ditadores e odeiam o povo.
A segunda
consideração a ser feita a partir do que já se sabia e que as informações do
Intercept confirmam é que Moro e a Lava Jato agiram politicamente o tempo todo,
motivados por um projeto político. Estas motivações se compõem de dois
elementos claros: impedir que Lula fosse eleito presidente e facilitar a
eleição de Bolsonaro. O candidato de Lava Jato e de Moro era Bolsonaro. A
ideologia da Lava Jato é uma ideologia de extrema-direita e se coaduna com a
ideologia do Bolsonarismo. As mensagens trocadas entre Moro e os procuradores
não deixam dúvida de que constituíam um grupo político conspirador. O caráter
político desse grupo está mais do que evidenciado com a presença de Moro no
Ministério da Justiça e com a presença de mais 18 integrantes da Lava Jato no
governo Bolsonaro. Impedir Lula, garantir a vitória de Bolsonaro e integrar o
governo era o primeiro ato da estratégia política desse grupo. O segundo, a
candidatura presidencial de Moro em 2022.
Moro e
Dallagnol, somados a outros integrantes da Lava Jato, incorreram em duas
imposturas: a do moralismo imoral e a da ação politicamente motivada. A ação
política do grupo mostra o quanto o moralismo era falso, pois acima dessa
demagogia criminosa pairava o frio interesse pelo poder, pelo metal, pela
promoção e pela vanglória da fama popular. Se transforaram em julgadores que
serão julgados, se não pelos tribunais superiores, pois sobre estes também
recaem graves suspeições, serão julgados pela opinião pública e pela história.
Com as provas já existentes, as páginas da história não haverão de ser
benévolas com eles.
A questão que
resta diz respeito à tática da oposição, principalmente do PT, para enfrentar
as denúncias contra Moro e seu grupo. Uma CPI talvez não seja o melhor caminho.
O melhor caminho parece ser o da intensificação da campanha por Lula Livre e
anulação do processo, acompanhada da exigência da renúncia de Moro. A renúncia
de Moro também deveria se transformar numa campanha. Por outro lado, deve ser
feito todo o esforço possível para que Moro e Dallagnol sejam investigados,
processados e julgados. Neste ponto se revelará o quanto os tribunais
superiores estão corrompidos nos seus princípios, acovardados perante os fatos,
submissos às pressões de generais. Os generais também precisam ser
confrontados: não podem querer serem os árbitros do jogo político do país. Ou
param com as pressões indevidas ou dizem que querem uma ditadura militar. A
democracia não pode ter suas instituições tuteladas por generais.
*Aldo Fornazieri
– Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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