Por que os adolescentes se automutilam?
Essa parece ser uma das perguntas mais
frequentes da atualidade, especialmente nos contextos familiar e escolar. Pais
de adolescentes tem manifestado muita preocupação com o fato de estar
aumentando consideravelmente a frequência de autolesões em jovens. Essa
temática também é uma constante no contexto escolar, emergindo como uma das
maiores preocupações dos educadores.
Frequentemente os temas da
automutilação, das tentativas de suicídio e do suicídio são tratados e
discutidos por profissionais da saúde mental, mas esses fenômenos não devem ser
exclusivamente pensados nesse contexto. Isso porque são fenômenos que ocorrem e
são motivados por múltiplas causas, humanas, existenciais e pela interação de
fatores individuais e sociais. Na medida em que o individual é coletivo, já que
construímos nossas identidades e nos integramos psiquicamente enquanto
sujeitos, na relação com o outro, com o coletivo é preciso situar a ocorrência
de atos individuais no contexto social no qual ocorrem. Nada que seja da esfera
do humano, nem mesmo os transtornos mentais, podem ser pensados exclusivamente
pelo viés de um único saber, uma vez que se adoecemos, mesmo que psiquicamente,
adoecemos num contexto específico, numa realidade histórica determinada.
Nesse sentido, antes de perguntarmos
porque os adolescentes tem se ferido propositalmente, precisamos perguntar
antes: quem são os adolescentes em nossa sociedade? Como os tratamos? O que
esperamos deles? Estamos à disposição desses jovens em suas angústias? Em nossa
sociedade, há espaço para sofrimento, dor e tristeza (falamos um pouco
disso aqui)
Para a psicanálise (especificamente a do
psicanalista inglês Donald W. Winnicott), ao menos desde os anos 1950 a
sociedade ocidental tem cerrado o espaço de manifestação de angústia dos
jovens. E, ao menos desde essa época, cada vez mais a tendência no âmbito
social (de forma genérica) é tratar a adolescência como um problema, como algo
a ser curado. Winnicott lembra que não há cura para a adolescência, já que essa
fase do desenvolvimento humano e de preparação para a vida adulta não constitui
uma patologia, nem um aborrecimento, mas uma fase de preparação pela qual todos
nós, incluindo aqueles que tratam adolescentes como aborrecentes, já passamos.
O psicanalista nos lembra, além disso, que o adolescente carrega toda a
dinâmica psíquica previamente construída na infância: ou seja, o adolescente
exterioriza sua maior ou menor preparação psíquica para a vida, para a
construção da identidade e do Ser (próprias da adolescência), mas essa prévia
integração psíquica depende de como foi a infância, entre outros aspectos.
Aqui, podemos colocar outra questão: de que modo estamos, atualmente,
investindo no cuidado e formação psíquica das crianças?
A adolescência é uma fase peculiarmente
complexa pois combina diversos fatores que podem ser estressores: fatores
hormonais, sociais e os psíquicos. E além desses fatores psíquicos que citamos,
cabe salientar que o adolescente busca modos de se fazer sentir real em seu
próprio corpo, e, na constituição de sua identidade pessoal, irá se isolar dos
pais algumas vezes, buscar entender seu próprio espaço no mundo e no próprio
corpo. Esses processos são esperados e nada tem de incomum. A questão é quando
isso ocorre com problemas carregados da infância, de frágil constituição
psiquica, de cobranças desde a infância para uma existência bem sucedida. É na
infância que o potencial espontâneo e criativo se efetua e sem isso, ou com
falhas nesse processo, o sujeito pode não conseguir se sentir real, pode se
sentir em uma existência de vazio e isso pode emergir na adolescência.
Winnicott enfatiza a importância do brincar na infância, mas atualmente as
crianças parecem estar cada vez mais tendo seus currículos profissionais
construídos. Há justificativas e méritos em investir na formação intelectual
desde cedo, mas há também que se pensar nos excessos e nas poucas brechas que
muitas vezes as crianças tem para brincar e serem crianças. Há ainda,
certamente, que se pensar no caso a caso.
É preciso citar ainda outras variáveis:
nossa sociedade é caracterizada por uma racionalidade competitiva, em termos de
mercado de trabalho e de marketing pessoal em todos os sentidos. A idéia
instituída como imperativo de que: "somos empresários de nós mesmos"
nem sempre é declarada, mas estamos sob essa dinâmica e isso é fácil de
verificar nos perfis das redes sociais. Só é declarado o melhor de si, o
alegre, sorridente e realizador. E é claro que nossa existência não se reduz a
isso; essa é uma fantasia perigosa para adultos, para adolescentes pode ser
devastadora.
E qual é, então, a relação, a
articulação de tudo isso com a automutilação? A automutilação em muitos casos é
uma tentativa de transpor ao corpo, ao somático, uma dor que é psíquica e que
portanto, é sem medida, é inominável. Pode parecer paradoxal, mas a autolesão
pode ser uma tentativa de regulação emocional, de dar visibilidade a uma dor
intangível na esfera emocional. É como uma tentativa de fazer a dor do corpo
dar realidade ao próprio corpo, ao próprio eu, e silenciar, ao mesmo tempo, a
dor psíquica. Se nossos adolescentes estão cada vez mais recorrendo a isso para
aliviarem suas angústias precisamos, em resumo, levar em consideração todos os
fatores que podem estar contribuindo para o crescimento desmedido de suas
angústias psíquicas. Se o adolescente não encontra espaço para relatar
que nem sempre consegue corresponder às expectativas da escola, dos pais e da
sociedade sobre ele, pode interiorizar o sofrimento e posteriormente, por não
aguentar, exteriorizar essa mesma angústia em seu corpo. O comportamento
autolesivo pode ser a alegoria de um pedido de ajuda que por diversas razões
não conseguiu ser oralmente comunicado. Precisamos , portanto, abrir espaços
genuínos para que os adolescentes exponham suas angústias sem serem julgados,
deslegitimados ou desrespeitados. E é preciso que eles estejam certos e seguros
da estabilidade desses espaços de diálogo e apoio, constantemente.
Por fim, sem dúvidas é preciso que todos
estejamos atentos e que haja ações de intervenção no sentido da promoção da
saúde mental e do tratamento adequado dessas ocorrências. Mas essas ações
necessitam estar interligadas, articuladas a outras discussões mais amplas, em
torno da promoção de equidade de direitos a todos, promoção de qualidade de
vida e da reflexão ampla sobre a dignidade de vida, incluindo dos modos de
vida, de constituição e de educação de nossas crianças e adolescentes. A discussão,
passa e ultrapassa o contexto da saúde mental. É de todos.
*Flávia Andrade Almeida é Psicóloga
Clínica e Hospitalar, Especialista em Psicologia da Saúde, Psico-Oncologia e
Prevenção do Suicídio. Atualmente Mestranda em Filosofia pesquisando o tema do
suicídio à luz dos escritos de Michel Foucault. Autora do blog e página do
Facebook "Psicologia e Prevenção do Suicídio”
Nenhum comentário:
Postar um comentário