"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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quinta-feira, 6 de junho de 2019

Análise do caso Neymar: levando a sério denúncias de estupro e presunção de inocência, por Maíra Zapater

Acho que só quem estava em Marte (ou fora das redes sociais) deixou de saber do “assunto quente” da semana: pelo menos por alguns dias, os holofotes se desviaram da balbúrdia que tem dominado os centros de poder desde o início de 2019 para se direcionarem sobre “o caso Neymar”. Sabemos por meio da imprensa e das redes sociais que uma moça acusou o jogador de estupro, reportou o fato em uma Delegacia de Defesa da Mulher, onde a autoridade policial lavrou um boletim de ocorrência. Segundo foi divulgado, o crime teria ocorrido em um hotel em Paris, para onde ela teria viajado a convite dele para um encontro após uma paquera pelas redes sociais.
A moça não nega que, de início, desejava manter relação sexual, nem que manifestou esse intento, mas relata que, após trocarem carícias, Neymar teria recusado o pedido dela para que usasse preservativo, ficando violento, partindo para agressões físicas e consumando o estupro, mesmo diante de seus pedidos para que interrompesse o ato sexual que haviam iniciado (veja reportagem aqui).
A conduta narrada pela moça corresponde ao ato previsto no artigo 213 do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso – pena: reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.” Sob a perspectiva processual, a comprovação de um crime de estupro exige que se demonstrem dois elementos: primeiro, a ocorrência de uma relação sexual (ou outro ato libidinoso); e, segundo, que o ato se deu mediante violência ou grave ameaça – ou seja, sem o consentimento da vítima. No caso de Neymar, até aqui, nenhuma das partes nega que o ato sexual ocorreu.
Portanto, a princípio se trata de fato incontroverso e que, por isso, independe de prova. Resta, assim, a discussão sobre o consentimento da moça: caberá à acusação demonstrar que ela não consentiu, pois o ônus da prova recai sobre o órgão acusador (no caso, o Ministério Público, uma vez formulada e recebida a denúncia – e não a moça que reportou o fato). É claro que, em respeito à ampla defesa e ao contraditório, a defesa poderá adotar como estratégia tentar demonstrar que a relação sexual foi consentida. Para tanto, poderá até mesmo juntar aos autos prints de conversas e fotos trocadas como forma de corroborar a versão de que ela jamais demonstrou a Neymar o seu dissenso. Ou seja: tentar provar que ela não disse o famoso “não é NÃO”.
Isto é o que deve ocorrer, nos termos da lei, no curso da ação penal, caso seja instaurada. Para nós, “o público”, o que se tem é um amontoado de depoimentos de segunda mão, falas desencontradas, advogado abandonando o caso e publicando os motivos da rescisão com a cliente, vídeos em redes sociais e entrevistas cedidas a canais de televisão por ambas as partes envolvidas. Como não fosse confuso o suficiente, todo esse cipoal de informações e declarações serve como combustível para audiência de empresas de telecomunicação (que, evidentemente, não têm como atividade-fim o esclarecimento da verdade em um processo judicial), tornando ainda mais difícil saber o que, de fato, aconteceu e fazendo com que qualquer conclusão, em qualquer sentido, seja precipitada. O risco de se cometer uma injustiça grave – seja contra Neymar, seja contra a moça que o acusa – é bastante alto.
É nesse tipo de situação que se escancara a importância do estado de inocência, esse princípio tão relativizado e vilipendiado pelos tribunais com suas prisões em 2ª Instância e outras decisões que simplesmente rasgam o texto constitucional em nome de abstrações sem lastro legal como “prender em razão da gravidade do delito”, ou “prender para manter a credibilidade do Poder Judiciário”. Nunca é demais lembrar do gravíssimo caso da Escola Base, ocorrido décadas antes da instauração dos “tribunais das redes sociais”, mas cujas acusações graves (de que os proprietários da escola teriam praticado abusos sexuais contra seus alunos, crianças com menos de 6 anos) tomaram tal proporção que os meios analógicos então disponíveis foram suficientes para destruir a vida de três pessoas injustamente acusadas em um procedimento que não ultrapassou sequer a etapa de inquérito policial por ter sido constatado que os fatos reportados jamais haviam ocorrido (conheça detalhes do caso aqui).
A demanda de movimentos feministas para que se levem a sério denúncias de estupro e outros crimes sexuais, para que a palavra da vítima seja realmente considerada sem preconceitos de gênero, para que vítimas (de qualquer gênero e idade) desse tipo de crime tenham acesso a atendimento em rede e possam ser ouvidas por profissionais constante e regularmente capacitados para evitar a violência institucional e a revitimização não exclui, em absoluto, os princípios processuais constitucionais do estado de inocência, da liberdade durante o processo como regra, do contraditório e da ampla defesa.
O direito à defesa, embora amplo, tem uma forma determinada de ser exercido para que seja legítimo, que é o chamado “devido processo legal”. Isto significa dizer que processo criminal permite como prova tudo o que for admitido em direito e que possa ser trazido para dentro de um processo. Porém, é somente nos autos do processo que essa defesa pode ser exercida de maneira válida e lícita – aliás, cansamos de ouvir na faculdade de Direito: “o que não está nos autos não está no mundo” (ainda que tudo o que esteja no mundo, desde que legalmente admitido, possa ser convertido em prova em um processo penal).
Muito bem: diante da acusação de estupro, Neymar tratou de se defender, não nos autos do processo, mas sim na sua conta do Instagram, exibindo conversas privadas de teor sexual e fotos íntimas da moça nua ou seminua, com seu rosto e partes íntimas borradas. E é sobre isso que quero falar: ao praticar esta conduta, Neymar praticou o crime de Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, previsto no artigo 218-C do Código Penal?
A caracterização do crime causou controvérsia entre estudiosos do meio jurídico. Por se tratar de um daqueles típicos casos capazes de inflamar discussões em razão dos temas moralmente sensíveis que envolve, proponho neste texto fazer uso da técnica da teoria geral do delito para discutir dogmaticamente o ocorrido[1], buscando destrinchar o caso concreto pela análise da sua tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, para verificar se a conduta praticada publicamente por Neymar corresponde ou não à previsão legal do crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, previstos no artigo 218-C do Código Penal.
Quem me acompanha aqui no Justificando sabe que não é do meu feitio me enveredar pelo idioma do juridiquês, e por isso, peço às leitoras e aos leitores, desde já, desculpas pelo teor talvez excessivamente técnico da escrita. Mas o uso de um método que privilegie aspectos técnicos de análise traz vantagens que, a meu ver, serão de grande valia neste caso: o método estruturado de resolução de casos que vou aplicar aqui permite uma análise racional de casos concretos e de controle da legalidade estrita, imprescindível à aplicação do Direito Penal em um Estado democrático de Direito.
Em uma brevíssima explicação sobre o método: trata-se de um passo-a-passo trilhado por meio de perguntas e respostas nas quais se procura verificar se o fato concreto em questão é típico (ou seja, se corresponde à descrição da lei penal); se, sendo típico, é antijurídico (ou seja, se foi praticado em contrariedade com o ordenamento jurídico ou se havia no caso concreto alguma situação excepcional em que a lei permite a prática do ato); e, se sendo típico e antijurídico, se é culpável o seu agente (ou seja, se ele era maior de idade e em plenas condições de saúde mental, se ele tinha conhecimento da natureza ilícita de seu ato, e se não se poderia exigir dele conduta diversa).
Passo agora a submeter ao método o seguinte caso concreto, aqui descrito a partir do vídeo publicamente divulgado: Neymar exibe em vídeo de sua conta pública do Instagram trechos de conversas por WhatsApp que teve com uma moça, e fotos da mesma nua e seminua, com seu rosto e partes íntimas do corpo borrados. No mesmo vídeo, ele declara que sua intenção com a exibição é de demonstrar que eles se conheciam e que houve um breve relacionamento, mas que não houve estupro, e sim uma relação sexual consensual.
Esta conduta concreta será submetida à análise a partir do tipo penal previsto no artigo 218-C, CP: Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia
Segue, a partir daqui, a análise dividida em tópicos:
  • Análise sobre a tipicidade da conduta
Tipicidade objetiva (correspondente à descrição dos atos praticados)
  1. a) A conduta concreta descrita acima corresponde à conduta (ou a alguma delas) prevista no artigo 218-C do Código Penal?
Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir,, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia
Resposta: sim. A conduta concreta consistiu em publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia(…) sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez(…). Trata-se de tipo penal misto alternativo, e, portanto a prática de apenas uma das condutas já é suficiente para configurar-se a tipicidade objetiva
  1. b) O tipo penal em questão exige qualidades especiais do autor? E quanto à vítima?
Resposta: não. Trata-se de crime comum quanto ao sujeito ativo e passivo. Vale ressaltar aqui que o artigo 218-C faz a ressalva de que somente se aplica se o fato não constituir crime mais grave, e os artigos 241-A, 241-B e 241-C do Estatuto da Criança e do Adolescente têm previsão no mesmo sentido, específica para criança e adolescente, com pena de 3 a 6 anos (ou seja, crime mais grave). Além disso, o §2º do art. 218-C coloca como uma das condições para exclusão da ilicitude a autorização da vítima maior de 18 anos (o que, contrario sensu, leva à conclusão de que existe o crime com vítima maior de 18). Portanto, qualquer pessoa pode ser autora deste crime, e qualquer pessoa adulta pode ser vítima (se o crime é praticado contra crianças ou adolescentes, aplicam-se as disposições do ECA).
  1. c) Qual o objeto da conduta?
  • Resposta: a privacidade, a intimidade e a dignidade sexual.
  1. d) Ocorreu algum resultado?
Resposta: o tipo não exige a realização de resultado específico, bastando a realização dos verbos ali previstos.
  1. e) Nexo causal:  a conduta de Neymar (exibir fotos da moça nua e seminua em seu Instagram) foi causa da violação da intimidade sexual da moça?
Resposta: sim. Neymar tinha recebido as fotos de forma privada e ele mesmo divulgou
CONCLUSÃO: presente a tipicidade objetiva.

Tipicidade subjetiva (correspondente à intenção do autor ao praticar os atos descritos)
  1. O autor tinha conhecimento e vontade do que fazia ao tempo da prática da conduta (art. 18, I, CP)?
Resposta: sim; ele sabia que se tratavam de fotos íntimas (inclusive diz isso para a câmera: “são momentos íntimos, mas infelizmente tenho que expor”)
  1. O tipo penal contém elementos subjetivos especiais (por exemplo: intenção específica de humilhar, de fazer chacota etc)?
Resposta: não, o tipo do caput não exige nenhuma finalidade especial para que o ato seja reconhecido como consumado. Se houver elemento subjetivo especial  de vingança ou humilhação, há aumento de pena previsto no §1º do artigo 218-C. Portanto, a contrario sensu, a intenção do autor ao divulgar as imagens (chacota, brincadeira, lascívia etc) é irrelevante para configuração do tipo subjetivo.
CONCLUSÃO: presente a tipicidade subjetiva

RESULTADO QUANTO À ANÁLISE DA TIPICIDADE: houve prática de fato típico.
  1. Análise sobre a antijuridicidade da conduta (correspondente às excepcionais autorizações legais para a prática da fatos a princípio criminosos)
1 – Legítima defesa
  • Situação de legítima defesa: houve agressão injusta atual/iminente?
Resposta: No caso concreto, a “agressão” seria o ato de a moça lavrar boletim de ocorrência acusando de estupro. Para a configuração da agressão como elemento autorizador do artigo 25, CP, prevalece que a agressão deve ser física (a agressão verbal, por exemplo, tem previsão específica da retorsão imediata  no capítulo dos crimes contra a honra, não se aplicando a legítima defesa). Ainda que se possa considerar como uma agressão, em relação à sua injustiça (no sentido de ilícita), esta precisaria ser provada em processo de denunciação caluniosa.
  1. b) Ação de legítima defesa: a conduta praticada repeliu agressão atual/iminente usando moderadamente dos meios necessários?
Resposta: o ato de exibir foto/diálogo íntimo não  é apto a impedir a acusação, nem o boletim de ocorrência. Ainda que se  pudesse considerar a lavratura de B.O. como agressão, não havia atualidade nem iminência quando a conduta de exibir as fotos foi praticada. E mesmo que a “moderação” seja discutível, não era necessário usar este meio, pois há meios jurídicos à sua disposição (como ampla defesa no processo penal; ou a ação cível de indenização por danos morais).
  1. c) Havia vontade de defesa na conduta praticada?
Resposta: em tese, sim. Porém, esta vontade/intenção é irrelevante para configuração do elemento subjetivo do tipo, conforme descrito no tópico anterior.
2 – Estado de necessidade
  • Situação de necessidade:  havia perigo atual a direito próprio, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar?
Resposta:  o “direito” defendido seria direito de defesa, e “perigo” seria a acusação e o boletim de ocorrência. Lavrar boletim de ocorrência (ainda que  com acusação falsa) não constitui perigo de lesão ao direito de defesa. Ademais, eventual risco de tal lesão poderia ser evitado de outro modo (falando nos autos, no devido processo legal).
  1. b) A ação praticada foi de salvamento?
Resposta: não havia perigo, logo, sua ação não foi de salvamento.
CONCLUSÃO: não havia situação de necessidade justificante do fato típico.

  1. Outras causas de justificação
  1. A conduta foi praticada em estrito cumprimento do dever legal ?
Resposta: não existe dever legal de exibir fotos.
  1. A conduta foi praticada em exercício regular de direito?
Resposta:  não, pois existe excludente específica no §2º do artigo 218-C:
Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.
  • No caso concreto, não se tratou de publicação destas naturezas; portanto a impossibilidade de identificação  da vítima é irrelevante, pois ausente este requisito (natureza da publicação). A natureza da publicação é de tal relevância para configurar a excludente que, se a vítima autorizar, pode até mesmo aparecer identificada.
CONCLUSÃO: não havia outra causa de justificação.
RESULTADO QUANTO À ANÁLISE DA ANTIJURIDICIDADE: o fato típico praticado era antijurídico.

III. Culpabilidade
  1. O autor da conduta é imputável?
Resposta: sim, trata-se de pessoa maior de idade, em pleno gozo das faculdades mentais.
  1. O autor da conduta estava consciente da proibição?
Reposta: seria necessário avaliar se, no caso concreto, Neymar errou sobre a ilicitude do fato (ou seja: se, embora conhecendo a lei que veda o vazamento de nudes, acreditou sinceramente que sua conduta não se configuraria este ilícito), e se esse erro era inevitável naquela situação concreta. Entendo ser razoável exigir que uma pessoa pública, usuário intenso de redes sociais e que dispõe assessoria jurídica consulte seus advogados para saber se é lícito exibir as fotos da moça no contexto alegado por ele.
  1. c) Era inexigível do autor conduta diversa da praticada?
Resposta: não. Neymar não era funcionário público sob obediência hierárquica de ordem superior não manifestamente ilegal, nem estava sob coação moral irresistível (art. 22, CP).
CONCLUSÃO: não há causas dirimentes da culpabilidade, podendo, em tese, ser reconhecido erro evitável sobre a ilicitude do fato, que poderia reduzir a pena de 1/6 a 1/3 no caso de condenação.
CONCLUSÃO GERAL DA ANÁLISE: a conduta se subsume ao artigo 218-C, CP, com possibilidade de redução de pena pelo artigo 21, CP (erro evitável).
Repito que é impossível no momento dizer qualquer coisa sobre a acusação de estupro, mas não temos dúvida de que a exposição das fotos aconteceu (sobre isso, ver este artigo de Deborah Diniz. Feita a análise técnica dogmática por meio do método estruturado de resolução de casos, segundo a qual Neymar, em tese (e digo em tese porque ainda não houve o processo criminal que legitime essa afirmação, e uma condenação depende de mais um monte de aspectos processuais – aqui analisei  apenas a parte material), a questão que se coloca aqui é: por que há tanta controvérsia em relação à subsunção da conduta relativa à exposição das fotos da moça ao tipo do artigo 218-C, CP? De outro lado, por que abolicionistas – como esta colunista que vos fala – se prestariam ao papel de legitimar o sistema punitivo que tanto criticam, reconhecendo que o fato praticado foi crime?
Vamos por partes: ter um discurso de crítica ao Direito Penal e à punição por meio da pena (em especial a pena de privação de liberdade) não é sinônimo de fazer malabarismos com as palavras para evitar o reconhecimento da tipicidade de uma conduta a todo custo. Fazer isso é lançar mão de um discurso para não reconhecer violências. Na sociedade punitiva (que tanto criticamos e criticaremos), o principal critério de reprovabilidade social de uma conduta é sua tipificação penal (a briga de movimentos sociais pelo reconhecimento da homofobia como crime demonstra isso – papo que eu deixo para um outro artigo). Como abolicionista, acredito que a escolha desse critério para simbolizar uma conduta como socialmente reprovável é profundamente questionável quanto à sua eficácia, justiça e legitimidade. Mas, fato é que o tipo penal está aí, gostemos ou não (e eu não gosto). Portanto, quando se manipula o sentido de uma norma penal para dizer que não é aquilo que está escrito, equivale a dizer que o fato concreto ocorrido não corresponde a uma violência, nem guarda a reprovabilidade imaginada pelo legislador (passo por esse tema neste artigo). O caso de Neymar, aliás, demonstra que prever uma determinada conduta como crime tem muito pouco poder de modificar culturas estabelecidas: a falta de consenso na comunidade jurídica sobre reconhecer a conduta de Neymar como (o que para mim é evidentemente) um crime, mostra a persistência de uma mentalidade que o Direito Penal não tem poderes para transformar.
E aqui entra a discussão sobre o porque tanto esforço em afirmar que a conduta de Neymar em exibir as tais fotos não corresponde ao tipo penal em questão: os argumentos não são técnicos, nem dogmáticos, como demonstrado pela aplicação do método estruturado de resolução de casos nos tópicos acima. Trata-se, sim, de padrões de gênero sendo reproduzidos em análises supostamente técnicas, mas eivadas de preconceitos. Por exemplo: afirmar que o rosto borrado da moça seria suficiente para afastar a tipicidade, porque “afinal, qual é o problema, se ela não pode ser identificada?” significa enxergar aquele corpo como um objeto desprovido de qualquer humanidade. O fato de ela se saber exposta sem autorização é irrelevante para quem lança esse argumento: “é só um corpo”. Não: não são “só um par de seios”, não é “só uma bunda”, é um corpo de uma pessoa que foi exibido em um contexto privado, e divulgado sem sua autorização (e sem autorização legal, como vimos).
Será que se Neymar aparecesse implicado em questões de lavagem de dinheiro e corrupção na Lava Jato haveria tamanho empenho em se demonstrar que não houve crime? Falo um pouco sobre isso neste artigo sobre o caso do goleiro Bruno. 
Os julgamentos feitos a partir de concepções de gênero me parecem inegáveis neste caso. E podemos continuar a discutir o assunto em próximas colunas.
O estado de inocência e a ampla defesa existem, e devem ser defendidas de forma veemente. Mas o devido processo legal exige que esta seja feita nos autos do processo, e não nas redes sociais. Especialmente quando o ingrediente principal dessa defesa é a aniquilação da humanidade de uma possível vítima, realizada por performances de gênero incompatíveis com o funcionamento democrático dos  mecanismos de justiça institucional.
*Maíra Zapater é doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC-SP e em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.

[1] Emprego aqui o chamado “método estruturado de resolução de casos”, desenvolvido no Direito Penal Alemão, denominado Gutachtenstil.




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