*Por Maíra Zapater
Acho que só quem estava em Marte (ou fora das redes sociais)
deixou de saber do “assunto quente” da semana: pelo menos por alguns dias, os
holofotes se desviaram da balbúrdia que tem dominado os centros de poder desde
o início de 2019 para se direcionarem sobre “o caso Neymar”. Sabemos por meio
da imprensa e das redes sociais que uma moça acusou o jogador de estupro,
reportou o fato em uma Delegacia de Defesa da Mulher, onde a autoridade
policial lavrou um boletim de ocorrência. Segundo foi divulgado, o crime teria
ocorrido em um hotel em Paris, para onde ela teria viajado a convite dele para
um encontro após uma paquera pelas redes sociais.
A moça não nega que, de
início, desejava manter relação sexual, nem que manifestou esse intento, mas
relata que, após trocarem carícias, Neymar teria recusado o pedido dela para
que usasse preservativo, ficando violento, partindo para agressões físicas e
consumando o estupro, mesmo diante de seus pedidos para que interrompesse o ato
sexual que haviam iniciado (veja reportagem aqui).
A conduta narrada pela
moça corresponde ao ato previsto no artigo 213 do Código Penal: “Constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso – pena:
reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.” Sob a perspectiva processual, a
comprovação de um crime de estupro exige que se demonstrem dois elementos: primeiro,
a ocorrência de uma relação sexual (ou outro ato libidinoso); e, segundo, que o
ato se deu mediante violência ou grave ameaça – ou seja, sem o consentimento da
vítima. No caso de Neymar, até aqui, nenhuma das partes nega que o ato sexual
ocorreu.
Portanto, a princípio
se trata de fato incontroverso e que, por isso, independe de prova. Resta,
assim, a discussão sobre o consentimento da moça: caberá à acusação demonstrar
que ela não consentiu, pois o ônus da prova recai sobre o órgão acusador (no
caso, o Ministério Público, uma vez formulada e recebida a denúncia – e não a
moça que reportou o fato). É claro que, em respeito à ampla defesa e ao
contraditório, a defesa poderá adotar como estratégia tentar demonstrar que a
relação sexual foi consentida. Para tanto, poderá até mesmo juntar aos autos
prints de conversas e fotos trocadas como forma de corroborar a versão de que
ela jamais demonstrou a Neymar o seu dissenso. Ou seja: tentar provar que ela
não disse o famoso “não é NÃO”.
Isto é o que deve
ocorrer, nos termos da lei, no curso da ação penal, caso seja instaurada. Para
nós, “o público”, o que se tem é um amontoado de depoimentos de segunda mão,
falas desencontradas, advogado abandonando o caso e publicando os motivos da
rescisão com a cliente, vídeos em redes sociais e entrevistas cedidas a canais
de televisão por ambas as partes envolvidas. Como não fosse confuso o
suficiente, todo esse cipoal de informações e declarações serve como
combustível para audiência de empresas de telecomunicação (que, evidentemente,
não têm como atividade-fim o esclarecimento da verdade em um processo
judicial), tornando ainda mais difícil saber o que, de fato, aconteceu e
fazendo com que qualquer conclusão, em qualquer sentido, seja precipitada. O
risco de se cometer uma injustiça grave – seja contra Neymar, seja contra a
moça que o acusa – é bastante alto.
É nesse tipo de
situação que se escancara a importância do estado de inocência, esse princípio
tão relativizado e vilipendiado pelos tribunais com suas prisões em 2ª Instância
e outras decisões que simplesmente rasgam o texto constitucional em nome de
abstrações sem lastro legal como “prender em razão da gravidade do delito”, ou
“prender para manter a credibilidade do Poder Judiciário”. Nunca é demais
lembrar do gravíssimo caso da Escola Base, ocorrido décadas antes da
instauração dos “tribunais das redes sociais”, mas cujas acusações graves (de
que os proprietários da escola teriam praticado abusos sexuais contra seus
alunos, crianças com menos de 6 anos) tomaram tal proporção que os meios
analógicos então disponíveis foram suficientes para destruir a vida de três
pessoas injustamente acusadas em um procedimento que não ultrapassou sequer a
etapa de inquérito policial por ter sido constatado que os fatos reportados
jamais haviam ocorrido (conheça detalhes do caso aqui).
A demanda de movimentos
feministas para que se levem a sério denúncias de estupro e outros crimes
sexuais, para que a palavra da vítima seja realmente considerada sem
preconceitos de gênero, para que vítimas (de qualquer gênero e idade) desse
tipo de crime tenham acesso a atendimento em rede e possam ser ouvidas por
profissionais constante e regularmente capacitados para evitar a violência
institucional e a revitimização não exclui, em absoluto, os princípios
processuais constitucionais do estado de inocência, da liberdade durante o
processo como regra, do contraditório e da ampla defesa.
O direito à defesa,
embora amplo, tem uma forma determinada de ser exercido para que seja legítimo,
que é o chamado “devido processo legal”. Isto significa dizer que processo
criminal permite como prova tudo o que for admitido em direito e que possa ser
trazido para dentro de um processo. Porém, é somente nos autos do processo que
essa defesa pode ser exercida de maneira válida e lícita – aliás, cansamos de
ouvir na faculdade de Direito: “o que não está nos autos não está no mundo”
(ainda que tudo o que esteja no mundo, desde que legalmente admitido, possa ser
convertido em prova em um processo penal).
Muito bem: diante da
acusação de estupro, Neymar tratou de se defender, não nos autos do processo,
mas sim na sua conta do Instagram, exibindo conversas privadas de teor sexual e
fotos íntimas da moça nua ou seminua, com seu rosto e partes íntimas borradas.
E é sobre isso que quero falar: ao praticar esta conduta, Neymar praticou o
crime de Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de
cena de sexo ou de pornografia, previsto no artigo 218-C do Código Penal?
A caracterização do
crime causou controvérsia entre estudiosos do meio jurídico. Por se tratar de
um daqueles típicos casos capazes de inflamar discussões em razão dos temas
moralmente sensíveis que envolve, proponho neste texto fazer uso da técnica da
teoria geral do delito para discutir dogmaticamente o ocorrido[1], buscando
destrinchar o caso concreto pela análise da sua tipicidade, antijuridicidade e
culpabilidade, para verificar se a conduta praticada publicamente por Neymar corresponde
ou não à previsão legal do crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de
estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, previstos no artigo
218-C do Código Penal.
Quem me acompanha aqui
no Justificando sabe que não é do meu feitio me enveredar pelo idioma do
juridiquês, e por isso, peço às leitoras e aos leitores, desde já, desculpas
pelo teor talvez excessivamente técnico da escrita. Mas o uso de um método que
privilegie aspectos técnicos de análise traz vantagens que, a meu ver, serão de
grande valia neste caso: o método estruturado de resolução de casos que vou
aplicar aqui permite uma análise racional de casos concretos e de controle da
legalidade estrita, imprescindível à aplicação do Direito Penal em um Estado
democrático de Direito.
Em uma brevíssima
explicação sobre o método: trata-se de um passo-a-passo trilhado por meio de
perguntas e respostas nas quais se procura verificar se o fato concreto em
questão é típico (ou seja, se corresponde à descrição da lei penal); se, sendo
típico, é antijurídico (ou seja, se foi praticado em contrariedade com o
ordenamento jurídico ou se havia no caso concreto alguma situação excepcional
em que a lei permite a prática do ato); e, se sendo típico e antijurídico, se é
culpável o seu agente (ou seja, se ele era maior de idade e em plenas condições
de saúde mental, se ele tinha conhecimento da natureza ilícita de seu ato, e se
não se poderia exigir dele conduta diversa).
Passo agora a submeter
ao método o seguinte caso concreto, aqui descrito a partir do vídeo
publicamente divulgado: Neymar exibe em vídeo de sua conta pública do Instagram
trechos de conversas por WhatsApp que teve com uma moça, e fotos da mesma nua e
seminua, com seu rosto e partes íntimas do corpo borrados. No mesmo vídeo, ele
declara que sua intenção com a exibição é de demonstrar que eles se conheciam e
que houve um breve relacionamento, mas que não houve estupro, e sim uma relação
sexual consensual.
Esta conduta concreta
será submetida à análise a partir do tipo penal previsto no artigo 218-C, CP:
Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda,
distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de
comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia,
vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro
de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o
consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia
Segue, a partir daqui, a análise dividida em
tópicos:
- Análise sobre a tipicidade da
conduta
Tipicidade objetiva (correspondente à descrição dos
atos praticados)
- a) A conduta concreta descrita
acima corresponde à conduta (ou a alguma delas) prevista no artigo 218-C
do Código Penal?
Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir,
vender ou expor à venda, distribuir,, vídeo ou outro registro audiovisual que
contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou
induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de
sexo, nudez ou pornografia
Resposta: sim. A conduta
concreta consistiu em publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive
por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -,
fotografia(…) sem o consentimento da vítima, cena de
sexo, nudez(…). Trata-se de tipo penal misto alternativo, e, portanto
a prática de apenas uma das condutas já é suficiente para configurar-se a
tipicidade objetiva
- b) O tipo penal em questão exige
qualidades especiais do autor? E quanto à vítima?
Resposta: não.
Trata-se de crime comum quanto ao sujeito ativo e passivo. Vale ressaltar aqui
que o artigo 218-C faz a ressalva de que somente se aplica se o fato não
constituir crime mais grave, e os artigos 241-A, 241-B e 241-C do Estatuto da
Criança e do Adolescente têm previsão no mesmo sentido, específica para criança
e adolescente, com pena de 3 a 6 anos (ou seja, crime mais grave). Além disso,
o §2º do art. 218-C coloca como uma das condições para exclusão da ilicitude a
autorização da vítima maior de 18 anos (o que, contrario sensu,
leva à conclusão de que existe o crime com vítima maior de 18). Portanto,
qualquer pessoa pode ser autora deste crime, e qualquer pessoa adulta pode ser
vítima (se o crime é praticado contra crianças ou adolescentes, aplicam-se as disposições
do ECA).
- c) Qual o objeto da conduta?
- Resposta: a privacidade, a intimidade e a
dignidade sexual.
- d) Ocorreu algum resultado?
Resposta: o tipo não
exige a realização de resultado específico, bastando a realização dos verbos
ali previstos.
- e) Nexo causal: a conduta de
Neymar (exibir fotos da moça nua e seminua em seu Instagram) foi causa da
violação da intimidade sexual da moça?
Resposta: sim. Neymar
tinha recebido as fotos de forma privada e ele mesmo divulgou
CONCLUSÃO: presente a tipicidade
objetiva.
Tipicidade subjetiva (correspondente à intenção do
autor ao praticar os atos descritos)
- O autor tinha conhecimento e
vontade do que fazia ao tempo da prática da conduta (art. 18, I, CP)?
Resposta: sim;
ele sabia que se tratavam de fotos íntimas (inclusive diz isso para a câmera:
“são momentos íntimos, mas infelizmente tenho que expor”)
- O tipo penal contém elementos
subjetivos especiais (por exemplo: intenção específica de humilhar, de
fazer chacota etc)?
Resposta: não, o tipo
do caput não exige nenhuma finalidade especial para que o ato
seja reconhecido como consumado. Se houver elemento subjetivo especial de
vingança ou humilhação, há aumento de pena previsto no §1º do artigo 218-C.
Portanto, a contrario sensu, a intenção do autor ao divulgar as
imagens (chacota, brincadeira, lascívia etc) é irrelevante para configuração do
tipo subjetivo.
CONCLUSÃO: presente a
tipicidade subjetiva
RESULTADO QUANTO À ANÁLISE DA TIPICIDADE: houve
prática de fato típico.
- Análise sobre a antijuridicidade
da conduta (correspondente às excepcionais autorizações legais para a
prática da fatos a princípio criminosos)
1 – Legítima defesa
- Situação de legítima defesa: houve
agressão injusta atual/iminente?
Resposta: No
caso concreto, a “agressão” seria o ato de a moça lavrar boletim de ocorrência
acusando de estupro. Para a configuração da agressão como elemento autorizador
do artigo 25, CP, prevalece que a agressão deve ser física (a agressão verbal,
por exemplo, tem previsão específica da retorsão imediata no capítulo dos
crimes contra a honra, não se aplicando a legítima defesa). Ainda que se possa
considerar como uma agressão, em relação à sua injustiça (no sentido de
ilícita), esta precisaria ser provada em processo de denunciação caluniosa.
- b) Ação de legítima defesa: a
conduta praticada repeliu agressão atual/iminente usando moderadamente dos
meios necessários?
Resposta: o
ato de exibir foto/diálogo íntimo não é apto a impedir a acusação, nem o
boletim de ocorrência. Ainda que se pudesse considerar a lavratura de
B.O. como agressão, não havia atualidade nem iminência quando a conduta de
exibir as fotos foi praticada. E mesmo que a “moderação” seja discutível, não
era necessário usar este meio, pois há meios jurídicos à sua disposição (como
ampla defesa no processo penal; ou a ação cível de indenização por danos
morais).
- c) Havia vontade de defesa na
conduta praticada?
Resposta: em tese, sim.
Porém, esta vontade/intenção é irrelevante para configuração do elemento
subjetivo do tipo, conforme descrito no tópico anterior.
2 – Estado de necessidade
- Situação de necessidade:
havia perigo atual a direito próprio, que não provocou por sua
vontade, nem podia de outro modo evitar?
Resposta: o
“direito” defendido seria direito de defesa, e “perigo” seria a acusação e o
boletim de ocorrência. Lavrar boletim de ocorrência (ainda que com
acusação falsa) não constitui perigo de lesão ao direito de defesa. Ademais,
eventual risco de tal lesão poderia ser evitado de outro modo (falando nos
autos, no devido processo legal).
- b) A ação praticada foi de
salvamento?
Resposta: não havia
perigo, logo, sua ação não foi de salvamento.
CONCLUSÃO: não havia
situação de necessidade justificante do fato típico.
- Outras causas de justificação
- A conduta foi praticada em estrito
cumprimento do dever legal ?
Resposta: não existe
dever legal de exibir fotos.
- A conduta foi praticada em
exercício regular de direito?
Resposta: não,
pois existe excludente específica no §2º do artigo 218-C:
Não há crime quando o agente pratica as condutas
descritas no caput deste artigo em publicação de natureza
jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que
impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização,
caso seja maior de 18 (dezoito) anos.
- No caso concreto, não se tratou de
publicação destas naturezas; portanto a impossibilidade de identificação
da vítima é irrelevante, pois ausente este requisito (natureza da
publicação). A natureza da publicação é de tal relevância para configurar
a excludente que, se a vítima autorizar, pode até mesmo aparecer
identificada.
CONCLUSÃO: não havia outra
causa de justificação.
RESULTADO QUANTO À ANÁLISE DA
ANTIJURIDICIDADE: o fato típico
praticado era antijurídico.
III. Culpabilidade
- O autor da conduta é imputável?
Resposta: sim, trata-se
de pessoa maior de idade, em pleno gozo das faculdades mentais.
- O autor da conduta estava
consciente da proibição?
Reposta: seria
necessário avaliar se, no caso concreto, Neymar errou sobre a ilicitude do fato
(ou seja: se, embora conhecendo a lei que veda o vazamento de nudes, acreditou
sinceramente que sua conduta não se configuraria este ilícito), e se esse erro
era inevitável naquela situação concreta. Entendo ser razoável exigir que uma
pessoa pública, usuário intenso de redes sociais e que dispõe assessoria
jurídica consulte seus advogados para saber se é lícito exibir as fotos da moça
no contexto alegado por ele.
- c) Era inexigível do autor conduta
diversa da praticada?
Resposta: não. Neymar não
era funcionário público sob obediência hierárquica de ordem superior não
manifestamente ilegal, nem estava sob coação moral irresistível (art. 22, CP).
CONCLUSÃO: não
há causas dirimentes da culpabilidade, podendo, em tese, ser reconhecido erro
evitável sobre a ilicitude do fato, que poderia reduzir a pena de 1/6 a 1/3 no
caso de condenação.
CONCLUSÃO GERAL DA ANÁLISE: a
conduta se subsume ao artigo 218-C, CP, com possibilidade de redução de pena
pelo artigo 21, CP (erro evitável).
Repito que é impossível no momento dizer qualquer
coisa sobre a acusação de estupro, mas não temos dúvida de que a exposição das
fotos aconteceu (sobre isso, ver este artigo de Deborah Diniz.
Feita a análise técnica dogmática por meio do método estruturado de resolução
de casos, segundo a qual Neymar, em tese (e digo em tese porque ainda não houve
o processo criminal que legitime essa afirmação, e uma condenação depende de
mais um monte de aspectos processuais – aqui analisei apenas a parte
material), a questão que se coloca aqui é: por que há tanta controvérsia em
relação à subsunção da conduta relativa à exposição das fotos da moça ao tipo
do artigo 218-C, CP? De outro lado, por que abolicionistas – como esta
colunista que vos fala – se prestariam ao papel de legitimar o sistema punitivo
que tanto criticam, reconhecendo que o fato praticado foi crime?
Vamos por partes: ter um discurso de crítica ao
Direito Penal e à punição por meio da pena (em especial a pena de privação de
liberdade) não é sinônimo de fazer malabarismos com as palavras para evitar o
reconhecimento da tipicidade de uma conduta a todo custo. Fazer isso é lançar
mão de um discurso para não reconhecer violências. Na sociedade punitiva (que
tanto criticamos e criticaremos), o principal critério de reprovabilidade
social de uma conduta é sua tipificação penal (a briga de movimentos sociais
pelo reconhecimento da homofobia como crime demonstra isso – papo que eu deixo
para um outro artigo). Como abolicionista, acredito que a escolha desse
critério para simbolizar uma conduta como socialmente reprovável é
profundamente questionável quanto à sua eficácia, justiça e legitimidade. Mas,
fato é que o tipo penal está aí, gostemos ou não (e eu não gosto). Portanto,
quando se manipula o sentido de uma norma penal para dizer que não é aquilo que
está escrito, equivale a dizer que o fato concreto ocorrido não corresponde a
uma violência, nem guarda a reprovabilidade imaginada pelo legislador (passo por esse tema neste artigo).
O caso de Neymar, aliás, demonstra que prever uma determinada conduta como
crime tem muito pouco poder de modificar culturas estabelecidas: a falta de
consenso na comunidade jurídica sobre reconhecer a conduta de Neymar como (o
que para mim é evidentemente) um crime, mostra a persistência de uma
mentalidade que o Direito Penal não tem poderes para transformar.
E aqui entra a discussão sobre o porque tanto
esforço em afirmar que a conduta de Neymar em exibir as tais fotos não
corresponde ao tipo penal em questão: os argumentos não são técnicos, nem
dogmáticos, como demonstrado pela aplicação do método estruturado de resolução
de casos nos tópicos acima. Trata-se, sim, de padrões de gênero sendo
reproduzidos em análises supostamente técnicas, mas eivadas de preconceitos. Por
exemplo: afirmar que o rosto borrado da moça seria suficiente para afastar a
tipicidade, porque “afinal, qual é o problema, se ela não pode ser
identificada?” significa enxergar aquele corpo como um objeto desprovido de
qualquer humanidade. O fato de ela se saber exposta sem autorização é
irrelevante para quem lança esse argumento: “é só um corpo”. Não: não são “só
um par de seios”, não é “só uma bunda”, é um corpo de uma pessoa que foi
exibido em um contexto privado, e divulgado sem sua autorização (e sem
autorização legal, como vimos).
Será que se Neymar aparecesse implicado em questões
de lavagem de dinheiro e corrupção na Lava Jato haveria tamanho empenho em se
demonstrar que não houve crime? Falo um pouco sobre isso neste artigo sobre o caso do goleiro Bruno.
Os julgamentos feitos a partir de concepções de
gênero me parecem inegáveis neste caso. E podemos continuar a discutir o
assunto em próximas colunas.
O estado de inocência e a ampla defesa existem, e
devem ser defendidas de forma veemente. Mas o devido processo legal exige que
esta seja feita nos autos do processo, e não nas redes sociais. Especialmente
quando o ingrediente principal dessa defesa é a aniquilação da humanidade de
uma possível vítima, realizada por performances de gênero incompatíveis com o funcionamento
democrático dos mecanismos de justiça institucional.
*Maíra Zapater é
doutora em Direitos Humanos pela USP, graduada em Direito pela PUC-SP e em
Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual
Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, professora e
pesquisadora. Autora do blog deunatv.
[1] Emprego aqui o chamado “método estruturado de resolução
de casos”, desenvolvido no Direito Penal Alemão, denominado Gutachtenstil.
Fonte: Publicado no Justificando
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